“Ele é um amigo: nos encoraja, perdoa quando nos afastamos dele, faz pensar no exagero das nossas angústias e nos mostra como a ruminação (mental) não serve para nós. Ele nos segue dia e noite, insistindo em mostrar que temos recursos próprios para viver como se não houvesse depressão.”
É assim que uma mulher de 74 anos se refere a seu mais novo companheiro na batalha contra a depressão: o programa de computador Deprexis, que acaba de ser aprovado pela Anvisa para uso no tratamento da doença.
No depoimento à BBC News Brasil, a paciente, que usa o programa desde abril, diz que ele a ensina uma coisa muito importante: “Aceitar (a depressão) não é se submeter, é conviver de um modo harmônico com os sintomas”.
O programa é o primeiro do tipo aprovado pela Anvisa no Brasil, segundo país no mundo a autorizá-lo como tratamento oficial, depois da Alemanha, segundo sua fabricante.
A depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo, segundo dados de 2015 da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, 11,5 milhões de brasileiros (cerca de 5,8% da população) são afetados – é o maior índice da América Latina e o quinto maior do mundo.
O uso do Deprexis para ajudar pacientes nesta situação simboliza a aplicação cada vez mais frequente da tecnologia por psicólogos e psiquiatras nas clínicas e universidades para o tratamento de distúrbios mentais e emocionais, como a síndrome de estresse pós-traumático e a ansiedade.
“Aplicativos, vídeos e programas são tecnologias cada vez mais usadas nesse tipo de tratamento, mas é algo de que precisamos nos aproximar mais”, disse à BBC News Brasil a psiquiatra e terapeuta cognitiva Melanie Ogliari Pereira, uma das fundadoras da Federação Brasileira de Terapias Cognitivo Comportamentais.
“Acho que o médico é muito conservador. Principalmente na psiquiatria, ainda vemos mais as dificuldades e os efeitos colaterais da tecnologia do que as possibilidades de fazer o bem.”
Programa só pode ser usado com prescrição médica
O Deprexis foi feito com base na Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) – um tratamento de curta duração que ensina técnicas específicas para atingir objetivos concretos de mudança de comportamentos e nas experiências do paciente.
“Nossa mente avalia todas as situações pelas quais passamos, e o resultado dessa avaliação pode ser uma imagem, uma ideia, uma frase. É o que chamamos de cognição. Essa espécie de fala privada é que determina o que a gente sente e gera os comportamentos que temos”, explica o psiquiatra e terapeuta cognitivo Irismar Reis, professor do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da McGovern Medical School na Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
“Quando você está deprimido, esse discurso privado é extremamente negativo e autoacusatório. Essa percepção negativa de si mesmo ou do mundo faz com que você se sinta mais triste ainda e se isole. Isso vira um circuito e se autoperpetua.”
A terapia cognitiva, segundo ele, ensina habilidades e técnicas para lidar com esses pensamentos e comportamentos.
O programa de computador, segundo seu fabricante, é usado para auxiliar neste tipo de terapia, mas deve ser prescrito por médicos, como se fosse um medicamento. Só com o número de registro do profissional (CRM) é possível acessar o tratamento, que deve ser feito por cerca de três meses. A licença para usar o produto custa R$ 990.
Ele não é o primeiro software do tipo no mundo, no entanto. Uma ferramenta australiana, Beating the Blues (“Derrotando a Tristeza”, em tradução livre do inglês), já é usada em alguns países como complemento do tratamento de depressão e ansiedade. Mas não está disponível no Brasil.
Em janeiro, o Instituto Nacional para a Saúde e o Cuidado de Excelência, órgão ligado ao Ministério da Saúde britânico, recomendou o Deprexis como ferramenta complementar do tratamento de depressão com base em um estudo feito com mais de mil adultos na Suíça e na Alemanha.
Em fevereiro, um estudo publicado no periódico científico Journal of Affective Disorders disse que o uso combinado do programa no tratamento reduziu mais os sintomas depressivos do que quando foram utilizada apenas sessões de psicoterapia.
“Na prática, o indivíduo entra no programa, e vai dando respostas às perguntas que ele coloca e descreve seus sintomas. A partir daí, recebe sugestões de técnicas de terapia, exercícios, informações sobre a doença”, explica Reis.
O psiquiatra alerta, no entanto, para o fato de que o programa não substitui o acompanhamento de um terapeuta e de um psiquiatra, especialmente em casos de depressão mais profunda.
“Ele não resolve o problema sozinho, mas ajuda o paciente a se dedicar ao seu tratamento também no dia a dia. Nós, terapeutas, temos dificuldade de fazer com que as pessoas façam determinadas atividades como ‘dever de casa’, algo que é muito importante.”
Realidade virtual contra a síndrome de estresse pós-traumático
Pesquisadores brasileiros também já começam a testar os usos de outro tipo de tecnologia, a realidade virtual, em pacientes com transtornos mentais ou emocionais. Com a ajuda de óculos especiais e fones de ouvido, o paciente é imerso em um ambiente digital e revive uma experiência ou situação que tenha lhe causado um trauma, ou seja, a origem de uma fobia.
O psicólogo e pesquisador Christian Kristensen, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), estuda há cinco anos a melhor forma de aplicar esse método no combate à síndrome de estresse pós-traumático.
Normalmente, neste tipo de tratamento, é pedido que o paciente relembre as memórias do episódio que originou o trauma, recontando com suas próprias palavras o que ele viveu.
“Se peço no consultório para uma pessoa acessar sua memória, não tenho como controlar o que se passa dentro da cabeça dela. Com a realidade virtual, eu consigo ter maior controle da situação com as imagens e sons, saber ao que você está sendo exposto e intervir”, disse à BBC News Brasil.
Pesquisadores brasileiros testam o uso da realidade virtual em pacientes com transtorns mentais ou emocionais (Foto: Christian Haag Kristensen)
Kristensen explica que a tecnologia, hoje bastante associada ao mercado de jogos e entretenimento, começou a ser aplicada em tratamentos psicológicos nos Estados Unidos nos anos 1990 para ajudar veteranos de guerra a superar experiências traumáticas de combate.
Ao não encontrar pesquisas que investigassem sua aplicação a traumas de situações vividas pela população em geral, como casos de violência urbana, ele decidiu criar seu próprio projeto com esse objetivo.
O fato de a tecnologia ter ficado mais barata possibilitou sua aplicação nestes tratamentos. O pesquisador explica que, há uma década, óculos de realidade virtual custavam cerca de US$ 10 mil. “Hoje, com US$ 500, você compra um bom equipamento”, disse.
Por enquanto, a pesquisa está focada em funcionários de bancos que tenham sido vítimas em episódios de assaltos a esses locais. O sistema está em sua terceira versão, após alguns ajustes na qualidade do ambiente virtual apresentado aos pacientes.
Kristensen disse que, ao todo, oito pacientes já foram tratados com o auxílio da tecnologia. “Ainda não temos um número suficiente de pacientes para saber se é um método superior ao atual e ainda precisamos fazer algumas análises dos resultados, mas eles apontam que a realidade virtual é ao menos tão eficiente quanto”, afirmou.
O cientista diz que a mesma tecnologia já é testada em motoristas de ônibus que sofreram algum tipo de violência e espera que ela possa ser aplicada também a vítimas de agressões e abusos.
“Por enquanto, no Brasil, é algo que existe só nas universidades ou em alguns centros de tratamentos de fobias. Acredito que, nos próximos dez anos, vai ser algo acessível para o terapeuta usar no consultório a um custo relativamente baixo para tratar o estresse pós-traumático.”
Uso de aplicativos e depoimentos em redes sociais contra o preconceito
Para a psiquiatra Melanie Pereira, os profissionais de saúde ainda utilizam pouco as ferramentas tecnológicas mais básicas já disponíveis para auxiliar os pacientes, como aplicativos de smartphone e até redes sociais.
“Algo que é muito forte hoje são os leigos, youtubers e formadores de opinião que falam sobre suas experiências. Quando eles são bem assessorados por profissionais, isso pode ser um grande serviço de saúde pública”, afirma.
De acordo com Pereira, existem cerca de 5 mil aplicativos de saúde mental para smartphone de diversos tipos – desde os que ensinam técnicas de meditação como forma de controlar a ansiedade até os que oferecem “quadros de humor” para que o terapeuta e o paciente possam monitorar a evolução dos sintomas.
Muitos deles são gratuitos, mas a maioria, ela diz, ainda não foi avaliada por pesquisadores e profissionais da área. Por isso, não é utilizada.
“Parece um questionamento básico, mas é algo do que precisamos nos aproximar mais. Problemas mentais estarão no topo dos problemas de saúde no mundo inteiro nos próximos dez anos”, diz.
“E muito poucas pessoas que têm esses transtornos chegam aos nossos consultórios, especialmente por causa do preconceito. Se ficarmos mais próximos da tecnologia e orientarmos os pacientes a usá-la, mais confortáveis as pessoas se sentirão para procurar ajuda.”
Fonte: bem estar
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