A formação das primeiras civilizações é uma questão central das ciências humanas, que tentam há séculos explicar como agrupamentos de humanos abandonaram o estado de natureza, sem regras e em um constante clima de guerra de todos contra todos.
O surgimento de leis, da autoridade do Estado e da religião são tradicionalmente apontados como vetores desse processo. Mas um elemento foi incluído recentemente nessa lista: as bebidas alcoólicas.
Essa é a tese central do livro “Drunk – How We Sipped, Danced, and Stumbled Our Way to Civilization” (em tradução livre: Bêbados – Como bebemos, dançamos e tropeçamos em nosso caminho rumo à civilização), escrito pelo filósofo americano Edward Slingerland.
Ele argumenta que o consumo de álcool foi uma ferramenta civilizatória fundamental ao permitir a colaboração de “primatas egoístas e desconfiados” em grandes grupos por meio da formação de laços sociais.
As bebidas alcoólicas aumentaram a criatividade de homem, quebraram barreiras, despertaram sentimentos de filiação e facilitaram a resolução de dilemas de cooperação. Assim, tornaram-se uma peça central da evolução humana.
Slingerland é professor de filosofia da Universidade de British Columbia, no Canadá, e doutor em estudos de Rreligião pela Universidade Stanford, nos Estados Unidos.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele fala da importância das bebidas alcoólicas para a humanidade e critica um “neopuritanismo” que, ao seu ver, teria transformado em tabu o estudo de aspectos positivos do álcool.
Slingerland reconhece que as bebidas alcoólicas podem ser uma droga poderosa, que oferece riscos (especialmente as destiladas e para quem bebe sozinho), mas discorda dos médicos que dizem não haver um limite seguro para seu consumo.
O filósofo defende uma abordagem deste assunto livre de preconceitos e que as pessoas tenham conhecimento dos perigos e benefícios para tomarem suas decisões de forma informada e consciente.
Qual foi o papel das bebidas alcoólicas no processo de civilização? O processo de civilização requer que primatas egoístas e desconfiados colaborem em uma escala maior do que a que estávamos biologicamente preparados. Para fazer essa transição acontecer, várias tecnologias culturais tiveram que ser desenvolvidas. Uma delas é a religião, que é o tema de outros importantes trabalhos acadêmicos, mas outras delas são os intoxicantes químicos e, especialmente, o álcool.
Bebidas alcoólicas foram usadas como uma ferramenta cultural para aumentar a criatividade individual e em grupos, para quebrar barreiras entre pessoas, para criar sentimentos de filiação, para resolver dilemas de cooperação (onde estamos vulneráveis a que outras pessoas tirem vantagens), em situações que demandam confiança. E também pela necessidade de aliviar o estresse e a tensão que vêm de viver em uma grande sociedade.
O álcool não é a única ferramenta em nosso arsenal e há várias outras que ajudam nesse processo, como a religião, sistemas legais etc. A questão central é que o papel das bebidas alcoólicas em ajudar essa transição tem sido amplamente ignorado.
Por quê? Acho que é parte por causa do que chamo de neopuritanismo, um desconforto em falar sobre bebidas alcoólicas de qualquer forma que possa parecer positiva.
Meu background acadêmico é em estudos da religião. Se olharmos para os teóricos clássicos de religião, muitos tinham uma postura muito desdenhosa em relação a intoxicantes químicos, criticando o que chamam de “xamãs modernos”, que usam alucinógenos para atingir o estágio de elevação. Isso seria uma forma falsa de ter a experiência mística, não seria a verdadeira experiência, segundo eles.
Em estudos de religião, fala-se sobre a importância da dança, do canto, dos movimentos sincronizados e, por algum motivo, se ignora completamente os intoxicantes químicos que estão sendo consumidos com frequência e em grandes quantidades enquanto as pessoas estão tendo essas experiências. É um ponto cego estranho e um melindre, uma relutância em reconhecer que as pessoas fazem isso, elas consomem essas substâncias, e que isso também pode ter efeitos positivos.
Que tipo de influência sua obra pode ter, considerando que o assunto ainda é tabu? Muito da cobertura da imprensa sobre o livro, por falar sobre bebidas alcoólicas, trata o trabalho pelo lado divertido e de curiosidade, sem levar tão a sério. A recepção acadêmica é mais lenta, e não tive nenhum retorno formal, mas tive respostas muito positivas de acadêmicos importantes envolvidos em estudos da história e psicologia do uso de drogas. O livro é de divulgação científica, mas traz uma contribuição acadêmica real, ainda que de forma popular.
Estava preocupado com uma possível reação dura por apontar aspectos positivos das bebidas alcoólicas, mas tive menos reclamações do que esperava. A maioria veio de pessoas que têm histórico de alcoolismo ou que têm alguém assim na família, e que reclamam desse aspecto.
Mas acho que fiz um bom trabalho no último capítulo do livro, deixando claro que reconheço que o álcool é muito perigoso e está se tornando mais perigoso no mudo moderno do que foi no passado. E acho que as pessoas entendem que o livro é motivado pelo fato de que o álcool é danoso e perigoso. O desafio é entender por que continuamos tendo este gosto por intoxicantes e que eles não são apenas algo que causa problemas de saúde e sociais.
Uma das funções das bebidas que seu trabalho aponta é aumentar a criatividade nas pessoas. Como isso ocorre? Antes de escrever sobre bebidas, fiz um estudo sobre um ideal que havia na China chamado wu-wei, que traduzi para ‘ação sem esforço’.
É um estado no qual você perde o senso de si mesmo como um agente, tudo parece acontecer de forma natural, e você não sente estar se esforçando e, no fim, tudo dá certo. O problema é que há uma tensão para se chegar a isso, pois é difícil tentar não tentar. Se você sabe que precisa relaxar e ser espontâneo, tentar atingir isso de forma consciente vai atrapalhar tudo. Meu estudo trata deste paradoxo.
Historicamente, os chineses desenvolveram uma série de estratégias e comportamentos para conseguir superar essas tensões. Uma delas é a meditação, outra é fazer rituais, ouvir músicas específicas. São estratégias que podem ajudar a superar esse paradoxo. Mas, ao escrever este livro, percebi que uma forma de fazer isso é tomar uma substância, bebidas alcoólicas, por exemplo, que ajudam a desativar a parte do cérebro que precisa ser desligada.
Cheguei a isso porque percebi que as culturas vêm usando bebidas alcoólicas como uma ferramenta psicológica para superar este paradoxo cognitivo. Em situações em que se quer que as pessoas relaxem e sejam mais espontâneas, a bebida faz isso.
Isso lembra a frase atribuída a Ernest Hemingway de que as pessoas devem escrever bêbadas e editar sóbrias. Exatamente. As pessoas precisam dos dois estados. Nós usamos diferentes substâncias químicas para diferentes propósitos. Acordei hoje e tomei café, por exemplo. A cafeína e a nicotina são excelentes drogas para fortalecer o foco e a atenção e ajudar você quando você precisa de energia e de foco. Elas são amigas do córtex pré-frontal do cérebro [tradicionalmente associado a funções executivas, como planejamento, tomada de decisão, memória de curto prazo, expressão de personalidade e moderação do comportamento social].
Mas há outras situações em que o problema que você está tentando resolver não é um que você pode atacar por esforço direto, e não adianta tentar se concentrar nele. Tem horas em que o que você precisa é de pensamento lateral, de criatividade, da capacidade de criar novas ideias e soluções. E, para isso, há outras drogas que ajudam, como a bebida alcoólica.
A frase de Hemingway reflete a ideia de que as ideias novas surgem quando as pessoas param de regular o córtex pré-frontal e começam a fazer novas conexões e pensar coisas novas. Mas, ao acordar no dia seguinte e tomar café, a pessoa pode usar um cérebro mais focado para decidir o que é bom disso que foi criado.
Essas ideias que apresento no livro de certa forma são intuitivas, mas nunca tinham sido expressadas diretamente e nunca tiveram uma abordagem científica. O livro tenta mostrar que muitas dessas intuições estão corretas. Elas são compartilhadas em diferentes culturas e através da história e de fato têm base empírica.
O livro apresenta justificativas históricas e evolutivas sobre o consumo de álcool, mas também defende que um dos motivos pelos quais as pessoas bebem é que isso é prazeroso, mas que as pessoas não falam sobre isso porque o álcool costuma ser criticado pela sociedade. Sim, isso é uma manifestação desse neopuritanismo. O prazer é algo sobre o qual evitamos falar, não admitimos que ele tenha peso no processo de tomada de decisão das pessoas. Meu argumento pode ser visto de forma irônica, pois muito do livro está tentando justamente se engajar em uma defesa das bebidas alcoólicas com uma abordagem próxima dos neopuritanos, argumentando que elas têm relevância funcional, que melhoram a colaboração e a confiança entre as pessoas, aumentam a criatividade… Então, de certa forma, estou me rendendo aos neopuritanos para dizer que há benefícios funcionais nas bebidas alcoólicas.
Foi por isso que, no final do livro, quis incluir também este argumento sobre o prazer, por mais que seja importante ignorar a questão do prazer na análise científica e evolutiva. Na história evolutiva que apresento, o prazer não pode ser um dos benefícios das bebidas alcoólicas, pois a evolução não se importa se estamos felizes ou não, se temos prazer ou não. Então, eu precisava do argumento funcional.
No fim do livro, argumento que não nos resumimos aos nossos genes. Somos pessoas, gostamos de prazer, nossos interesses enquanto indivíduos não estão totalmente alinhados com os interesses dos nossos genes. Então, como indivíduo, tomando uma decisão sobre consumir bebidas alcoólicas ou não, é preciso levar em consideração que elas são prazerosas, elas melhoram o humor, elas fazem comidas ter sabor melhor, fazem um bom par com comidas, aumentam conexões com outras pessoas.
Mas temos um certo desconforto em falar desse aspecto das bebidas alcoólicas. Tanto que a maior parte da literatura científica que trata de álcool é sob a perspectiva médica, analisando os custos fisiológicos dele.
O livro discute um estudo que diz que não há limite seguro para o consumo de álcool. Por que isso pode ser uma abordagem equivocada? Este estudo analisa apenas aspectos fisiológicos do consumo de álcool e indica que qualquer volume que seja consumido tem efeitos negativos. Ainda há debates sobre essa avaliação, que foi muito criticada, mas o ponto é este. Mas, mesmo assumindo que seja uma avaliação correta, o principal problema dela é a defesa da redução de riscos a qualquer custo.
Podemos argumentar que dirigir é perigoso e que a melhor forma de reduzir mortes relacionadas a automóveis seria proibir as pessoas de dirigirem ou limitar a velocidade de todos os carros a 40 km/h. Isso reduziria as mortes causadas por acidentes de carro. Mas qual seria o custo disso? A economia entraria em colapso.
Estamos sempre fazendo análises de custo e benefício. Sim, dirigir é perigoso, mas é importante para a sociedade. Por algum motivo, a abordagem médica e científica não faz isso no caso das bebidas alcoólicas. Elas podem causar danos ao corpo? Sim. Mas elas têm outros benefícios evidentes.
Indivíduos fazem este cálculo, empresas também fazem, mas o establishment médico tem uma abordagem puramente fisiológica, por mais que sejam ignoradas por muitos indivíduos que intuitivamente sabem os benefícios e tomam suas decisões. Nesse sentido, o objetivo do meu livro é dar voz a essas funções e benefícios e articular tudo claramente e mostrar que esses benefícios são válidos e compartilhados por diferentes culturas através da história.
Isso pode ajudar cada indivíduo a tomar sua própria decisão sobre consumir ou não bebidas alcoólicas de forma mais inteligente, conhecendo melhor os custos e benefícios.
Essa visão informada seria capaz de superar o neopuritanismo? É difícil prever. O establishment médico é inerentemente muito conservador, e não sei se vai mudar. Mas espero que as pessoas que fazem políticas públicas conheçam esses benefícios. Isso seria importante, por exemplo, na decisão do que seria fechado durante a pandemia.
Da mesma forma que pensamos sobre a importância de fechar ou não escolas, fechar ou não supermercados etc. Bares e lugares que servem comida e bebida foram fortemente afetados por lockdowns em todo o mundo por serem vistos como um simples vício, algo que pode facilmente ser fechado.
Mas se passarmos a ver bares como lugares aonde as pessoas vão não apenas por causa dos seus vícios, mas como um lugar de comunidade, onde as pessoas se reúnem para socializar, onde colegas compartilham informações e ideias ligadas ao trabalho, isso precisa ser levado em consideração por quem toma decisões deste tipo.
O livro aponta que bebidas alcoólicas costumavam ter mecanismos de segurança, mas que isso mudou e alterou a relação da sociedade com o álcool. Quais eram esses mecanismos e o que levou a essa mudança? As bebidas alcoólicas sempre tiveram dois mecanismos de segurança embutidos. Um deles era o limite da fermentação natural. As leveduras usam o açúcar e o transformam em etanol porque são relativamente resistentes a ele e fazem isso como uma arma biológica na guerra contra bactérias com quem disputam os açúcares. Mas elas não são muito resistentes, então, em um determinado momento do processo de fermentação, a concentração de etanol chega a um ponto que impede a atuação das leveduras e paralisa a fermentação.
Há muito tempo os seres humanos vêm manipulando as leveduras, que estão se tornando cada vez mais fortes. O fermento talvez seja o mais antigo “animal” domesticado pelos humanos, porque há tempos tentamos fazer bebidas mais fortes. Mas ainda assim há limites. Um vinho shiraz australiano pode chegar no máximo a 16% de álcool, e é a bebida mais forte que se pode alcançar com a fermentação natural.
Então, na maior parte da nossa história, o que consumimos eram cervejas e bebidas feitas de grãos que chegavam normalmente até 2% ou 3% de álcool. Quando se bebe algo assim, é difícil consumir álcool demais. O imenso volume que é preciso consumir para ficar bêbado faz com que seja difícil exagerar.
Quando argumento pelos benefícios sociais e individuais das bebidas alcoólicas, estou tratando de níveis baixos de embriaguez, algo até 0,08 miligramas de álcool. É muito fácil ficar abaixo disso quando se consome uma cerveja com até 3% de álcool.
Mas a humanidade inventou a destilação. Nesse processo, o etanol é separado e concentrado, e é possível produzir vodkas com mais de 90% de álcool. Pensando numa média histórica, passamos muito tempo consumindo bebidas com 5%, 10% de álcool, mas, de repente, damos um salto e chegamos a mais de 90%. Passamos então a lidar com uma nova droga, ainda que tecnicamente seja o mesmo etanol.
Nossos corpos evoluíram para lidar com o etanol. Temos enzimas que servem especificamente para quebrar o etanol e o retirar do corpo. Quando a pessoa toma doses de vodca e de tequila, ela sobrecarrega totalmente esse sistema. O corpo não tem como lidar com essa quantidade de álcool consumida nessa velocidade. E as pessoas podem ficar muito bêbadas muito rapidamente, então, é um risco maior.
Outro mecanismo de segurança seria o aspecto social das bebidas alcoólicas. De que forma isso ajuda a manter o consumo de álcool em níveis mais saudáveis? Historicamente, costumávamos consumir estas bebidas em situações em que há regras sociais. É sem precedentes o nível de acesso privado a bebidas alcoólicas que se tem hoje. Em todas as sociedades, só se bebia em público, em eventos sociais, geralmente com refeições. As bebidas sempre estavam envolvidas em rituais cuidadosamente planejados em que havia sempre uma forma de controlar as quantidades de álcool consumidas.
Em um banquete na China antiga, por exemplo, as pessoas tinham seus copos, mas só podiam beber quando uma determinada pessoa propusesse um brinde. Há uma pessoa ritualisticamente determinada para ser o mestre de brindes, que pode controlar o ritmo de consumo de bebida das pessoas.
O simpósio grego tinha uma pessoa que tinha o poder de decidir sobre a distribuição das bebidas, e ninguém podia beber de forma diferente. Ele também determinava a quantidade de água que era misturada ao vinho, podendo deixar a bebida mais diluída para reduzir o consumo.
Até mesmo em situações que parecem sem controle em bares mais contemporâneos, há regras informais que ajudam a controlar o consumo. As pessoas bebem juntas e não costumam ter ritmos diferentes. Além disso, há um processo para pedir, receber, se servir, então há “lombadas” que limitam e controlam o ritmo do consumo de álcool.
Claro que as coisas não eram universalmente uniformes, e há culturas diferentes especialmente no sul e no norte da Europa, por exemplo. As pessoas de culturas do norte bebem mais destilados, bebem mais sozinhas, ficam bêbadas com mais frequência, proíbem o consumo por crianças e adolescentes, enquanto as cultura do sul, especialmente Portugal, Espanha, Itália, bebem especialmente cerveja e vinho, sempre no contexto de refeições e com alimentos envolvidos, muitas vezes com a família, crianças são introduzidas às bebidas muito mais cedo, então o álcool é visto como uma parte normal da vida.
Tudo isso deixa de existir quando uma pessoa pode carregar o carro com caixas de vodka e levar para beber em casa, sozinho, de frente para a TV e sem ninguém controlando o ritmo e a quantidade consumidos.
Biologicamente, muitos humanos têm tendência ao alcoolismo. Aproximadamente 15% da população está geneticamente propensa, mas, se olharmos para as taxas reais, elas variam muito em todo o mundo. Os índices são muito altos na Rússia, no norte da Europa, por exemplo, nos Estados Unidos. E em lugares como na Itália, por exemplo, as taxas são muito baixas, ainda que o consumo per capita seja muito alto. Argumento que isso é por causa desse truque cultural. Há tradições envolvidas no consumo bebidas alcoólicas, há normas que evitam que eles bebam em excesso.
Nos últimos dois anos, o consumo de álcool aumentou por causa da pandemia. De que forma isso afeta as pessoas que bebem sozinhas? Com a pandemia, as coisas saíram do controle. Quase todas as pessoas começaram a fazer justamente isso que aponto como problemático. As pessoas ficaram presas em casa, muitas vezes sozinhas. Então deixa de ser o ambiente natural e tradicional para o consumo de bebidas alcoólicas. Isso é pior porque os humanos não são muito bons em regular o consumo de álcool por si mesmos. Precisamos de outras pessoas. E isso se perdeu totalmente na pandemia.
Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Polêmica Paraíba