Uma igreja em Dallas, no Texas, uma das cidades mais religiosas dos Estados Unidos, tornou-se um porto seguro para quem busca abortos.
Para seus fiéis, sua longa história na luta pelo direito à escolha traz esperança para um futuro após a derrubada da decisão histórica no caso Roe x Wade pela Suprema Corte.
Bem antes do amanhecer em Dallas, um grupo de mulheres já estava sentado mexendo em seus celulares ou escolhendo o que comer de café da manhã na sala de aula onde haviam sido instruídas a se reunir, enquanto esperavam para embarcar em um voo que mudaria suas vidas.
Muitas eram mulheres de minorias étnicas, de origens diferentes. Uma adolescente veio com sua mãe.
Outra mulher dirigiu noite afora desde Oklahoma. Mas todas tinham uma coisa em comum: estavam grávidas de mais de seis semanas e não podiam fazer um aborto legalmente no Estado do Texas.
Todas haviam depositado sua confiança em pessoas aparentemente improváveis – voluntários da Primeira Igreja Unitária de Dallas – que as levariam de avião para o Novo México, onde poderiam interromper a gravidez.
A tensão era palpável quando o pastor da igreja, o reverendo Daniel Kanter, se dirigiu às mulheres: “Deus te ama. Você tem dignidade e valor e sua vida é a prioridade aqui. Se você está surpresa que uma pessoa de fé como eu esteja na sua frente dizendo isso, isso é uma coisa boa. Mas não deveria ser assim”.
Uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos na semana passada reverteu um precedente de 50 anos que dizia que as mulheres americanas tinham o direito constitucional ao aborto, e muitos daqueles que fizeram campanha por essa mudança eram cristãos proeminentes.
No entanto, a questão do aborto e da fé é muito mais variada. A Primeira Igreja Unitária de Dallas, especificamente, tem uma longa história de luta pelo acesso ao aborto, tendo ajudado a concretizar a decisão de 1973 no caso Roe x Wade que garantia o direito ao procedimento.
Essa missão não terminou com a reversão de Roe x Wade – e a nova luta da Primeira Igreja Unitária para ajudar as mulheres a fazer abortos revela muito sobre as surpreendentes divisões entre os cristãos americanos sobre o assunto.
Antes da legalização do aborto, as pessoas costumavam recorrer a líderes religiosos para obter ajuda com gestações indesejadas. Uma rede de líderes protestantes e judeus fundada em 1967, o Clergy Consultation Service, já fornecia aconselhamento e encaminhamento aos médicos que realizavam o procedimento. Estima-se que o serviço tenha ajudado mais de 400 mil pessoas a terem acesso ao aborto.
Hoje, o aborto é considerado por muitos cristãos evangélicos e católicos como um caso claro de assassinato, condenado na Bíblia.
De acordo com uma pesquisa recente do Pew Research Center, quase três quartos (74%) dos protestantes evangélicos brancos acreditam que o aborto deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos.
Dentro deste universo, no entanto, há nuances. Quase dois terços dos protestantes negros e a maioria dos protestantes brancos não evangélicos dizem o contrário – que o procedimento deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos – assim como a maioria dos católicos.
A divisão geralmente se resume a uma questão existencial sobre quando a vida começa e a um debate teológico sobre como Jesus instrui os seguidores a viver suas vidas.
Para Albert Mohler Jr., um batista evangélico e presidente do Seminário Teológico Batista do Sul, a decisão da Suprema Corte de derrubar Roe x Wade foi “absolutamente necessária”. Para Mohler e milhares de cristãos evangélicos, a Bíblia é inequívoca quanto ao aborto.
“Cada vida é feita à imagem de Deus e, portanto, é de valor inestimável e infinito”, disse ele, acrescentando que os cristãos que dizem o contrário diferem dele não apenas teologicamente, mas moralmente. “Tenho que trabalhar e rezar para que essa divergência permaneça pacífica e, na medida do possível, respeitosa”, afirmou.
Mas, para os cristãos pró-aborto, apoiar o direito à escolha está de acordo com o exemplo que Jesus deu, segundo Katey Zeh, pastora batista e presidente da Coalizão Religiosa para Escolha Reprodutiva.
Cristo “apareceu para as pessoas em seus momentos vulneráveis, especialmente para as pessoas que foram impactadas pela opressão sistêmica e aquelas que foram empurradas para as margens”, disse ela. “Eu o enxergo como um dos acompanhantes da clínica, que estaria lá dentro para segurar as mãos das pacientes.”
Os unitaristas universalistas estão há muito tempo no campo pró-escolha. “Antes de Roe x Wade, o clero da minha igreja estava levando mulheres ao Golfo do México para ir em barcos até águas internacionais para fazer um aborto legal e seguro”, disse o reverendo Kanter.
A denominação como um todo tem raízes no cristianismo protestante, mas agora incorpora tradições de outras religiões. Muitos unitaristas universalistas hoje ainda se identificam como cristãos, no entanto.
Era janeiro de 1970 quando o grupo de mulheres da Primeira Igreja Unitária de Dallas se reuniu para discutir uma questão que dividia a nação na época, como ocorre agora: o aborto.
De acordo com atas às quais a BBC teve acesso, eles foram acompanhados por uma jovem advogada chamada Linda Coffee, que junto com sua colega Sarah Weddington, estava determinada a entrar com uma ação contra o Texas por suas restrições ao aborto.
Ann*, que estava sentada entre as mulheres reunidas naquele dia, disse que – assim como o país – as opiniões sobre o aborto entre as mulheres do grupo na época variavam muito. “Mas, quanto mais aprendemos sobre o quão difícil realmente era [fazer um aborto], mais radicais ficamos”, diz ela, hoje com 92 anos.
Como nenhuma das mulheres estava grávida na época, nenhuma poderia ser a autora de uma ação na Justiça, então, ajudaram enviando um resumo legal importante em apoio ao direito de escolha quando Coffee e Weddington foram aos tribunais com o caso Roe x Wade. Hoje, esse legado persiste, e há sinais dele por toda a igreja.
Placas no saguão informam aos visitantes que a igreja fornece uma pílula anticoncepcional de emergência para quem precisa. Há também informações sobre o curso de educação sexual que os unitaristas universalistas oferecem do jardim de infância até a idade adulta. O programa enfatiza relacionamentos saudáveis, consentimento e comunicação, sexo e acesso à saúde reprodutiva.
Muitos dos membros da igreja compartilharam suas próprias histórias com a BBC. Adryelle disse que quase morreu ao dar à luz seu primeiro filho e que não podia imaginar ser forçada a continuar com uma gravidez. Peg afirmou ter tido sorte, porque, antes do aborto ser legalizado nos Estados Unidos, conseguiu fazer o procedimento de forma segura e legal enquanto viajava pelo Reino Unido.
O reverendo Kanter disse começou a rede de acesso ao aborto no Novo México quando o Texas aprovou uma das leis de aborto mais restritivas do país no ano passado. A iniciativa é financiada por doações de pessoas pró-aborto de diferentes religiões em todo o país. Para se qualificar à ajuda, a pessoa deve estar abaixo da linha da pobreza.
A igreja diz que seu papel é simplesmente facilitar o acesso, não encorajar as pessoas a fazerem – ou não – o procedimento. Essa é uma escolha pessoal, disse Kanter.
Em um domingo recente, ele compartilhou do púlpito a história de sua própria experiência com o aborto. Falou abertamente sobre se apaixonar, sexo, indiscrição juvenil e, finalmente, uma decisão difícil tomada junto com uma ex-parceira de interromper a gravidez. Parte de sua decisão de se tornar um líder religioso foi para se curar da experiência, afirmou.
Sem o conhecimento de muitos, a igreja contratou seguranças que estavam sentados à paisana entre os fiéis naquele domingo, um reconhecimento de quão volátil a questão se tornou.
Com Roe x Wade derrubada, mais e mais Estados aprovarão proibições ao aborto. Kanter disse que espera aumentar a frequência das viagens ao Novo México.
Na noite em que Roe x Wade foi derrubada, a igreja se reuniu novamente para dar as mãos e orar por forças para continuar com sua missão de ajudar as pessoas que buscam o aborto.
“Suportem essa dor, não será por muito tempo”, disse ele a seus congregados. “Faremos o que pudermos para ajudar as mulheres a realizar abortos seguros e legais.”
Fonte: Terra
Créditos: Polêmica Paraíba