Algumas das principais universidades do país contribuíram com a ditadura militar do Brasil por meio da espionagem de alunos e professores. Entregue em março, o relatório final da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo(USP) revela a existência de um setor dentro da reitoria responsável pela perseguição política. Uma estrutura semelhante foi montada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de acordo com documento que será apresentado por pesquisadores nesta segunda-feira.
A Comissão da Memória e Verdade da UFSC concluiu que, durante a ditadura militar, o reitor e membros da administração assumiram o “papel de espionagem, denúncia, censura, repressão e controle ideológico” de alunos e professores. O texto, ao qual o GLOBO teve acesso menciona que, a partir de 1972, durante o governo de Garrastazu Medici, a universidade montou uma estrutura chamada de Assessoria de Segurança e Informação (AESI), que municiava o Serviço Nacional de Informações (SNI).
Formada por militares e civis, a AESI enviava relatórios quinzenais ao SNI, segundo evidências encontradas pelos pesquisadores da comissão. Essa vigilância institucional dentro do campus levou a “demissões, não-contratações e perseguições internas políticas”, segundo o relatório. Ao longo da ditadura, houve dez assassinatos e três desaparecimentos por motivações políticas em Santa Catarina – nenhum deles era estudante da UFSC.
No caso da USP, a Comissão da Verdade estima que até 10% dos mortos ou desaparecidos políticos no Brasil tivessem alguma relação com a instituição. De 434 pessoas que morreram ou desapareceram no país devido a abusos do Estado entre 1946 e 1988, 47 eram funcionários, professores ou alunos da universidade.
Assim como a UFSC, a USP também tinha uma AESI subordinada à reitoria. Segundo a Comissão da Verdade da USP, a AESI colaborou com a perseguição política e reuniu evidências de formatações ideológicas e administrativas no período.
Além de UFSC e USP, ao menos outras cinco universidades apresentaram relatórios de comissões independentes para investigar os efeitos da ditadura militar em sua estrutura interna e o modo de cooperação com os aparelhos de repressão do Estado: Universidade Federal da Bahia (UFBA), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Segundo levantamento feito pelo GLOBO, ao menos mais 14 universidades montaram comissões com a mesma finalidade, mas ainda não concluíram o trabalho. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, o relatório final está sendo elaborado.
Essas comissões universitárias começaram a aparecer após os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2002 para investigar e esclarecer violações de direitos humanos praticadas pelo Estado entre 1946 e 1988. A pesquisa da comissão nacional mostrou, entre outras coisas, que cooperações entre a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e o Ministério da Educação levaram a uma reforma da estrutura do ensino público brasileiro, aprovada pela lei 5.540/68, sancionada pelo ex-presidente Costa e Silva semanas antes do AI-5.
Segundo os pesquisadores da UFSC, a universidade era considerada pelos militares referência na aplicação dessa reforma. O fundador da universidade, João David Ferreira Lima, que foi reitor de 1960 a 1972, atuou na formulação do projeto.
— Um dos grandes motivos pelos quais a UFSC passou a ser considerada pelo regime militar como referência na implantação da Reforma de 1968 foi o fato de Lima ser visto como grande autoridade em gestão universitária, além de ter sido conivente e ativo com a implantação dos decretos presidenciais e ações de investigação e repressão da ditadura militar — diz Victor Cunha, um dos estudantes bolsistas membros da comissão da UFSC
REFERÊNCIA A CANCELLIER
Trecho do relatório que será divulgado nesta segunda-feira também faz referência à Operação Ouvidos Moucos, da Polícia Federal, que prendeu o então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, e outros seis professores em 14 de setembro de 2017. Cancellier se matou 18 dias depois.
“A história recente da UFSC nos mostrou, em duas oportunidades, que o arbítrio, a truculência, a violência e o desrespeito ao ser humano continuam presentes no país, a despeito inclusive da lei que, no caso da universidade, garante a autonomia universitária”, diz o texto.
O outro episódio citado ocorreu em março de 2014, quando agentes da Polícia Federal prenderam estudantes acusados de usar drogas dentro do campus, causando confronto entre alunos e a Polícia Militar.
O relatório foi elaborado por estudantes bolsistas, servidores e docentes. Os pesquisadores colheram 21 depoimentos e realizaram três audiências públicas, além de pesquisar centenas de documentos ao longo de mais de três anos.
Fonte: O Globo
Créditos: TIAGO AGUIAR