— Presidente Donald Trump numa conversa privada em 2017, citado no novo livro do ex-diretor do FBI (Polícia Federal dos EUA) Andrew McCabe

 

O PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS, Donald Trump, e seu governo estão pouco se lixando para o povo venezuelano. Para a democracia, tampouco. Sempre foi assim. E é importante que qualquer conversa construtiva sobre a crise política venezuelana comece com o reconhecimento deste fato.

Vamos lembrar que Trump é o cara que chamou nações da América Latina e África de “países de merda” (shithole countries), fez campanha em cima das ideias de “América primeiro” (America first) e que mexicanos são “estupradores”, acabou com regras para minimizar mortes de civis em ações militares e decidiu separar dos seus pais crianças latinas — até bebês — que tentavam ser reconhecidos como refugiados nos EUA. Trump colocou essas crianças em prisões horrorosas. E não pense por um segundo que ele se liga para a diferença entre uma criança venezuelana, mexicana e guatemalteca.

Para além de todas as declarações de Trump mostrando seu total desprezo pelas pessoas em países como a Venezuela, em um discurso no Congresso em 2017, Trump pediu uma nova legislação para “garantir que os dólares americanos de ajuda externa sempre sirvam aos interesses americanos e que só vá aos amigos da América, e não aos inimigos da América” (como se isso fosse uma novidade).

Em uma entrevista à Fox News Business, seu principal conselheiro de segurança nacional, John Bolton, disse sem nenhuma hesitação:

“Estamos conversando com grandes empresas americanas agora (…) Acho que estamos tentando chegar ao mesmo resultado aqui. (…) Faria uma grande diferença para os Estados Unidos economicamente se pudéssemos ter companhias de petróleo americanas realmente investindo e produzindo com o potencial de petróleo da Venezuela. Seria bom para o povo da Venezuela. Seria bom para o povo dos Estados Unidos. Nós dois temos muita coisa em jogo aqui fazendo isso sair do jeito certo.”

Os EUA querem abrir mercado para empresas americanas por lá — empresas cujas operações venezuelanas foram desapropriadas pelo governo chavista. Petróleo, é só nisso que eles estão pensando. Bolton apoiou vigorosamente a guerra no Iraque — e ainda acha que foi a decisão certa mesmo diante de resultados catastróficos para a população local e para a região — e quer novas guerras com Irã e Coreia do Norte. Em uma coletiva de imprensa no início deste mês, Bolton disse que “o presidente deixou claro que todas as opções estão na mesa” sobre a Venezuela, claramente sugerindo que um bombardeio ou invasão militar não estão descartados. Recentemente, Trump repetiu a mesma frase.

É incontestável, então, que os líderes dos EUA estão explicitamente interessados no petróleo venezuelano, a maior reserva do mundo, superior até mesmo a qualquer país da península arábica. Eles não se importam com “danos colaterais” (leia-se: sofrimento humano) e têm uma postura extremamente belicosa e perigosa em sua política externa.

E, como se ainda precisasse de mais provas disso, Bolton e Trump escolheram Elliot Abrams para liderar a missão na Venezuela, um cara intimamente envolvido no golpe militar contra Hugo Chávez em 2002 e também em um golpe fracassado na Palestina; um dos idealizadores da guerra em Iraque; que literalmente facilitou crimes contra humanidade em Honduras, Nicarágua e Guatemala; e que foi condenado por mentir ao congresso americano sobre seus crimes (leia sua ficha corrida aqui).

Mas esses fatos são tratados como secundários — quando não ignorados — no debate que estamos tendo nos EUA e Brasil sobre Venezuela, porque existe algo considerado ainda mais imperativo: “ajuda humanitária”.

O amplo e errôneo uso da expressão para descrever as provisões que os EUA estão tentando entregar dentro de Venezuela para seus aliados — o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, e seus apoiadores — é uma aula na construção de uma narrativa propagandística para desviar o foco do público e ganhar seu apoio.

Trump, Bolsonaro e a mídia, em sua grande maioria, repetem a expressão sem pudor:

O único problema é que não é “ajuda humanitária”. Trump, lembre-se, já deixou claro que dólares americanos só podem ser gastos quando servem “aos interesses americanos”. Os R$ 75 milhões de provisões que os EUA ofereceram só podem ser entregues para apoiadores de Guaidó, o político venezuelano que se declarou presidente no dia 23 de janeiro e foi imediatamente reconhecido pelos EUA e seus aliados. Entregar recursos para um lado de um conflito político enquanto nega qualquer diálogo ou apoio ao outro lado é exatamente o oposto de humanitarismo. Se chama política.

Organizações de assistência humanitária são guiadas pelos princípios de humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência. São conceitos importantes para manter sua credibilidade com as populações e atores de conflitos e para garantir que seu trabalho sirva às populações vulneráveis e que não é cooptado por um lado de um confronto. O apoio dessas organizações é distribuído para todas as pessoas em necessidade, não interessa o partido político que defendam, seja na Venezuela, na Síria ou qualquer outro país.

O jogo dos Estados Unidos neste momento deixou Maduro em um beco: se ele permitir a entrada dos suprimentos, passa a imagem de fraco e implicitamente reconhece a legitimidade do Guiadó, aumentando o poder da oposição. Se bloqueia a entrega, parece cruel e autoritário. De qualquer forma, Trump ganha.

Se a entrada das mercadorias é forçada na fronteira, cria situações de tensão em que pessoas podem ser feridas ou mortas, um cenário que também beneficia os interesses dos EUA porque impõe a Maduro o papel de malvado e beligerante – “só um ditador pode ser contra a entrada de ajuda humanitária”, argumentam os ingênuos.

A situação provoca um ciclo a favor de Trump: as imagens dos conflitos geram indignação, o que justifica novas e mais agressivas medidas dos EUA. Isso é o que aconteceu no último fim de semana, quando várias pessoas foram mortas e dezenas foram feridas. Os EUA “responderam”com ainda mais sanções.

É por isso que instituições como a Cruz Vermelha e o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários se recusaram a participar dessas ações “humanitárias” dos EUA e seus aliados. “A ação humanitária precisa ser independente de objetivos políticos, militares ou outros,” disseuma porta-voz da ONU este mês.

A Cruz Vermelha também fez uma declaração:

“Neste contexto, a Cruz Vermelha enfatiza que atender às necessidades mais urgentes do povo venezuelano e seguir estritamente os princípios de neutralidade, imparcialidade e independência continua sendo sua prioridade.

A rede global da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho abster-se-á de participar de discussões politizadas, mas está preparada para responder às necessidades humanitárias à medida que estas se desenrolam neste ambiente imprevisível.”

Aerial view of the Tienditas Bridge, in the border between Cucuta, Colombia and Tachira, Venezuela, after Venezuelan military forces blocked it with containers on February 6, 2019. - Venezuelan military officers blocked a bridge on the border with Colombia ahead of an anticipated humanitarian aid shipment, as opposition leader Juan Guaido stepped up his challenge to President Nicolas Maduro's authority. (Photo by EDINSON ESTUPINAN / AFP) (Photo credit should read EDINSON ESTUPINAN/AFP/Getty Images)

O bloqueio da ponte Tienditas para impedir “ajuda humanitária” estadunidense virou a imagem icônica para demonstrar a crueldade de Maduro após um tweet do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo. A maioria da mídia internacional repetiu a sua narrativa, sem verificar os detalhes. Na realidade, depois que o projeto foi concluído em 2017, a ponte nunca foi aberta, devido a desentendimentos entre Colômbia e Venezuela.

Foto: Edinson Estupinan/AFP/Getty Images

A estratégia dos EUA foi genial em termos de impacto na opinião pública internacional. Criou a percepção, na mídia, de que o governo Maduro está bloqueando ajuda humanitária. Só que 1) não foi ajuda humanitária e 2) ajuda humanitária está, sim, entrando na Venezuela. A Cruz Vermelha, por exemplo, tem 2.600 voluntários espalhados pelo país e opera oito hospitais e 38 clínicas. A ONU está ampliando sua ajuda humanitária no país. Neste mês, Maduro anunciou que 300 toneladas de provisões chegariam da Rússia (vale notar que, se o governo negar acesso desses produtos russos aos apoiadores do Guaidó, não poderíamos chamá-los de “ajuda humanitária” tampouco).

Enquanto focamos na “ajuda humanitária”, ignoramos o quanto Trump está estrangulando a economia do país (mais sobre isso abaixo).

Se você realmente se importa com os venezuelanos que estão sofrendo e acredita que esse povo merece ajuda, parabéns. Você é uma pessoa com coração e com certeza não faz parte da administração Trump. Mas, agora pense comigo: você realmente acredita que eles se importam com uma guerra civil infernal de quatro décadas na Venezuela caso Maduro seja deposto à força enquanto empresas americanas exploram petróleo à vontade? Nem eu.

Até o ano passado, cerca de 98 mil venezuelanos cruzavam a fronteira com o Brasil para fugir da situação em que o país se encontra hoje. Quantos você acha que começarão a chegar caso o país entre em guerra? Estima-se que hoje existem 5,9 milhões de armas em circulação entre civis na Venezuela e as forças armadas não carecem de poder de fogo. Qual seria o resultados direto para o Brasil se houvesse uma carnificina? Pergunte para Turquia, Alemanha, Paquistão ou Líbano.

Somente idiotas consideram que uma intervenção militar ou um golpe fabricado seria o melhor caminho.

Como o senador americano Chris Murphy tuitou:

“Perdoe-me se duvido das intenções humanitárias de um presidente que trancou crianças em gaiolas e tentou cortar o Departamento de Estado em 40%. Eu questiono o método e a bravata, não a ajuda. Você consegue entregar comida para a Venezuela sem incitar uma guerra.”

O petróleo é rei

A economia venezuelana é absolutamente dependente de produzir petróleo e vendê-lo no exterior. Este lucro representa em torno de 95% da receita de exportação nacional e por volta de 25% do PIB. No Brasil, seria equivalente a quase toda a agricultura, indústria pesada e manufatureira juntas. Entre 2014 e 2016, o preço real de petróleo caiu 58% e não se recuperou até hoje. Isso obviamente provocou uma crise econômica drástica no país. E, no meio dessa crise, o então presidente Barack Obama chocou observadores e, de repente, declarou uma emergência nacional, designando a Venezuela como uma “ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e às relações exteriores” dos EUA, e implementou sanções. Em 2017, Trump ampliou as sanções e começou a alvejar o setor de petróleo. Os americanos, até recentemente, eram os maiores compradores do petróleo venezuelano.

Chávez e Maduro tomaram várias decisões que prejudicaram a economia e a indústria petroleira, inclusive a demissão em massa de gerentes anti-chavistas em 2003, o que liquidou com muito do conhecimento da petroleira estatal PDVSA. Fizeram sua “despetização” por lá. Além disso, o controle do câmbio implantado pelo governo serviu para exacerbar a corrupção, e teve também o congelamento de preços, que criou distorções no mercado e esmagou o poder de compra da população, levando uma massa de pessoas à miséria. Mas o impacto das sanções não pode ser subestimado.

Como os EUA tem a maior economia do mundo e é o centro financeiro global, todo mundo que quer interagir com o país precisa fazer de tudo para não correr o risco de ser punido ou, ainda pior, ter seu acesso ao mercado americano bloqueado. Desde 2015, os EUA ampliou o risco de fazer negócios com ou emprestar dinheiro para Venezuela e suas empresas. Isso cria dificuldades para que o governo e as empresas locais consigam crédito no exterior, como fazem todas as economias do mundo.

Mas o impacto das sanções se tornou astronômico quando começou a impedir o funcionamento da PDVSA a partir de 2018 e bloqueou quase todos os seus bens no exterior em 2019. Até um banco estatal russo — o terceiro maior da Venezuela — foi forçado a congelar as contas da PDVSA enquanto a Rússia continua como um dos principais financiadores de Maduro.

Como o presidente venezuelano gosta de lembrar a todo mundo, Trump ofereceu R$ 75 milhões em “ajuda”, mas bloqueia R$ 112 milhões em renda petroleira todo dia. Os efeitos colaterais são enormes.

Pois essa é a função das sanções: detonar a economia alvejada para virar a opinião pública contra o líder para que ele mude de comportamento ou seja derrubado por terceiros com apoio popular. O bloqueio do Iêmen, junto com uma longa campanha de bombardeios, ambos feitos pela coalizão liderada pela Arábia Saudita com apoio americano, criaram a maior crise humanitária no mundo hoje. As sanções econômicas contra o Iraque antes da segunda guerra americana naquele país em 2003 provocaram um sofrimento incalculável dos iraquianos. Eles simplesmente não se importam.

“As sanções econômicas e os bloqueios modernos são comparáveis aos cercos medievais das cidades”, escreveu Alfred de Zayas, o primeiro relator especial da ONU a visitar Venezuela em 21 anos. “As sanções do século 21 tentam ajoelhar não apenas uma cidade, mas países soberanos”, ele continuou. Em uma entrevista para o jornal britânico The Independent, Zayas, que é o ex-secretário do Conselho de Direitos Humanos da ONU e especialista em direito internacional, disse que as sanções americanas contra Venezuela são ilegais e podem chegar até ser consideradas “crimes contra humanidade”.

Petróleo é o coração da economia e retaliações contra a indústria foram desenhadas para induzir o sofrimento do povo por motivos políticos — são ações em direta contradição com a suposta ajuda humanitária.

O ditador

As eleições venezuelanas de 2018 não foram livres e justas. Maduro prendeoponentes políticos. Seu governo é acusado de usar tortura contra inimigos políticos. Ele até expulsou o jornalista mexicano-americano Jorge Ramos por fazer perguntas que o desagradaram. Corrupção no alto escalão do governo é inegável. Cabe à comunidade internacional exigir que a Venezuela e todos os outros países sigam normas democráticas e usem diplomacia e pressão multilateral (não guerra) para incentivar isso. Eu acredito nisso. Mas os EUA não.

Lá, nos Estados Unidos, é literalmente ilegal para uma empresa aderir a um boicote econômico contra Israel — um país que ocupa territórios e controla milhões de palestinos sem dar o direito ao voto — criado por outros estados. Se uma empresa quer manter seus negócios nos EUA, não mexa com Tel-Aviv. Só porque Israel é um “país amigo”.

Ou olhe, por exemplo, o caso da República Democrática do Congo. O mandato do ditador Joseph Kabila tinha acabado, mas ele não quis largar a presidência. Kabila assumiu o cargo após seu pai — que deu um golpe de estado em outro ditador golpista — e foi assassinado. Após dois anos de enrolação, ele finalmente convocou uma eleição em dezembro do ano passado. O candidato de Kabila, Felix Tshisekedi, perdeu a eleição por 19 pontos – e mesmo assim foi declarado o vencedor.

Apesar de enormes provas de fraude, o embaixador dos EUA elogiou Tshisekedi e chamou a eleição de “a primeira transferência pacífica e democrática de poder” no país. Pois ele, assim como Kabila e seu pai antes dele e Mobutu antes dele, seria receptivo às corporações americanas e canadenses que querem explorar a riqueza colossal dos minérios do país a preço de banana. Em 1960, quando um líder congolês foi eleito democraticamente, mas não dançava a música americana, a CIA assassinou ele.

Os EUA são fortes aliados de Salman bin Abdulaziz Al Saud da Arábia Saudita, de Abdel Fattah el-Sissi do Egito, de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo da Guiné Equatorial, de Paul Kagame de Ruanda etc etc — todos ditadores com currículos nojentos. China, seu maior parceiro econômico, é uma ditadura comunista que atualmente mantém preso 1 milhão de membros da minoria étnica uighur, de acordo com a ONU. Quando o país aboliu limites de mandatos, abrindo as portas para Xi Jinping continuar como líder vitalício, Trump elogiou a decisão: “Presidente vitalício… acho ótimo. Talvez tenhamos que tentar isso algum dia”. Parafraseando o ex-presidente Franklin Delano Roosevelt, eles podem ser filhos da puta, mas são os nossos filhos da puta.

Trump quer trocar um filho da puta que não dobra os joelhos por um filho da puta que se ajoelha e dá a pata. E, quando o FDP não faz o que se espera dele, os EUA o servem aos leões.

Foi o caso do Muammar Gaddafi em 2011. No domingo passado, o senador americano Marco Rubio tuitou imagens dele, claramente como uma mensagem para Maduro. Gaddafi foi, com certeza, um filho da puta, mas, desde que foi derrubado, sodomizado com uma baioneta até morrer e seu corpo arrastado pelas ruas, seu país, a Líbia, está numa guerra civil sem fim, provocando uma enorme crise de refugiados, desestabilizando a região, espalhando terrorismo e promovendo o mercado clandestino de armas e escravos. Rubio, tiete de uma intervenção militar na Venezuela, sabe de tudo isso, mas acha que vale a pena. Grande humanitário.

Na próxima vez que você assistir Trump ou seus minions chorando sobre a crueldade de Maduro por negar a benevolente ajuda dos EUA ou qualquer reportagem jornalística que segue essa narrativa, sorria, cuspa e lembre que você está sendo manipulado! Não precisa gostar de Maduro para ser contra a ideia do Donald Trump derrubá-lo sob o risco de transformar a Venezuela nas novas Líbia, Síria ou Colômbia no século passado.