Levantamento mostra que dos 3,3 milhões de títulos anulados pelo TSE mais de 1 milhão foi em municípios pequenos com 25% da população em situação de pobreza; cancelamentos cresceram 183% em relação à eleição de 2014.
No último dia 26 de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve por 7 votos a 2 o cancelamento dos títulos dos eleitores que não fizeram o recadastramento biométrico obrigatório nos municípios determinados pela Justiça Eleitoral. No total, mais de 3,3 milhões de títulos eleitorais foram cancelados em 1.248 cidades de 22 estados do país.
Levantamento inédito da Pública, feito com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do IBGE, mostra que os cancelamentos se concentraram em cidades pequenas, com colégios eleitorais menores e Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) abaixo da média nacional.
Ao todo, cerca de 1,7 milhão de títulos eleitorais foram cancelados em 1.178 cidades com colégios eleitorais abaixo de 50 mil eleitores, segundo os dados do TSE. Metade do total de títulos foi cancelada nesses municípios, que também possuem IDH-M abaixo da média nacional. Enquanto esse grupo de municípios registra IDH-M de 0,646, a média nacional é de 0,727.
Os cancelamentos ocorreram em municípios com maiores taxas de pobreza e de população rural do que a média brasileira. O grupo de cidades que registram cancelamentos possui em média 13,6% da população em situação de pobreza extrema (mais que o dobro da taxa nacional, de 6,6%) e 26% da população em situação de pobreza – renda domiciliar média de R$ 140,00 –, índice mais elevado do que o registrado nacionalmente em média (15,2%), segundo os dados do Censo de 2010 do IBGE. Mais de 1 milhão de títulos eleitorais (quase um terço do total) foram cancelados em municípios com mais de um quarto da população em situação de pobreza.
O grupo de municípios que registram os cancelamentos possui em média um quinto da população (20,1%) em zona rural. Nacionalmente, essa proporção é de 15,6% em média, segundo o Censo de 2010. Em municípios com mais de 30% da população em zona rural, o dobro do que é registrado nacionalmente, foi cancelado um total de 1 milhão de títulos eleitorais.
Durante o julgamento no STF, o TSE justificou, em ofício enviado ao ministro Luís Roberto Barroso, os critérios de escolha dos municípios. A partir de 2015, o cadastro biométrico passou a ser obrigatório após a publicação da resolução Res-TSE 23.440/2015, em cujo artigo 9º o tribunal estabeleceu os critérios para isso. Os incluídos são aqueles previamente indicados para o cadastro biométrico pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), inscritos em zonas eleitorais que registrem transferências de eleitores superiores a 10% em relação ao ano anterior, que tenham o eleitorado (população em idade de voto) superior ao dobro da população não votante e maior que 65% da população total, além de disponibilidade orçamentária suficiente para implementar o cadastro biométrico.
O TSE defendeu também, no ofício enviado ao Supremo, a adoção da biometria, argumentando que ela visa “conferir legitimidade ao corpo eleitoral” e evitar duplicidades e pluralidades de inscrição. Não necessariamente cada título eleitoral cancelado corresponde a um eleitor específico: há casos de eleitores com mais de um título eleitoral, além de títulos cancelados referentes a eleitores acima de 70 anos ou analfabetos, para os quais o voto não é obrigatório, eleitores que morreram e não foram retirados do cadastro eleitoral, entre outras hipóteses.
O tribunal afirmou ainda que a revisão do eleitorado é um “procedimento realizado ao longo de todo o ano não eleitoral […]” e que é observado o critério da “ampla e prévia divulgação destinada a orientar o eleitor quanto aos locais e horários em que deverá comparecer, a documentação a ser apresentada, a duração dos trabalhos (nunca inferior a 30 dias), e às consequências do não atendimento à convocação”. Para o TSE, reverter os cancelamentos àquela altura significaria comprometer o calendário eleitoral.
O recadastramento biométrico, no entanto, fez com que o número de títulos eleitorais cancelados antes da disputa eleitoral quase triplicasse. Antes das eleições de 2014, 1,2 milhão de títulos eleitorais foram cancelados, segundo o TSE. Em relação à última eleição presidencial, levando-se em conta os números absolutos, os cancelamentos cresceram 183%.
Em Queimados (RJ), quase 40% dos títulos eleitorais foram cancelados
Queimados, localizada na Baixada Fluminense, foi a mais afetada pelo cancelamento de títulos eleitorais por falta de cadastramento biométrico, de acordo com levantamento feito pela Pública. Do total de 113 mil eleitores registrados pelo TSE em 2016, 38,5% ficarão de fora destas eleições. É a maior taxa, se comparada aos outros 1.247 municípios onde houve a suspensão de títulos.
A cidade também está no topo dos índices de violência no país, de acordo com o Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o estudo, Queimados tem taxa de 134,9 mortes violentas para cada 100 mil habitantes.
Localizada no sul do Pará, Cumaru do Norte está em segundo lugar no ranking dos municípios mais afetados pela anulação dos títulos, com 34,4% de documentos cancelados. A cidade passou de 7.596 para 4.899 eleitores depois do cadastramento biométrico. A cidade tem o perfil da maioria dos municípios atingidos: IDH abaixo da média nacional, de 0,55 (ligeiramente acima do que a Organização das Nações Unidas classifica como “baixo”), com aproximadamente um quarto da população (24,5%) em situação de extrema pobreza e 74% na zona rural. Além disso, cerca de 11% da população é indígena.
A terceira colocada no ranking é Água Azul do Norte (PA), onde 28,7% dos títulos eleitorais foram cancelados. Nesse município paraense, mais de um quinto da população (22,3%) está em situação de pobreza e mais de 80% vivem em área rural. A Pública entrou em contato com os Tribunais Eleitorais do Pará e do Rio de Janeiro solicitando um posicionamento a respeito do alto índice de anulação de títulos, mas não houve retorno até o fechamento desta edição (veja o mapa com as 10 cidades mais afetadas).
Na avaliação do cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Lucas Cunha, o cancelamento de títulos por falta de cadastramento biométrico pode causar impacto no resultado das eleições, principalmente em regiões em que os eleitores se interessam menos por política e que tendem a ter um perfil socioeconômico mais específico: “com menor renda, menor escolaridade, regiões de menor IDH”. Ele justifica que o perfil socioeconômico, desde as eleições de 2006, tem tido relação direta com as preferências do eleitorado. Lucas Cunha pondera, no entanto, que o não comparecimento eleitoral também tem um viés socioeconômico. “Tem eleitores com cadastramento biométrico que não vão votar”, observa.
O cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro Jairo Nicolau tem outra visão. Para ele, o cancelamento de 3,3 milhões de títulos eleitorais após o cadastramento biométrico não vai prejudicar o resultado do pleito. Ele chegou a essa conclusão após comparar o universo de eleitores aptos a votar em 2014 e 2018. “Como o recadastramento aconteceu em todo o país, o mais provável é que as eliminações em um território tenham sido compensadas em outros. Eleitores que não moravam mais em Salvador, por exemplo, acabaram tirando o título em outra cidade; já os novos moradores da cidade teriam se registrado como eleitores soteropolitanos”, argumentou em artigo publicado no site Observatório das Eleições, projeto que une cientistas políticos e instituições de pesquisa de diversas universidades.
Fonte: El país
Créditos: El país