povo sem medo

Protestos anti-Bolsonaro se impõem nas ruas e reavivam pauta do impeachment

Atos em dezenas de capitais foram os mais contundentes desde que ultradireitista chegou ao poder. Uso de máscara foi disseminado, mas houve aglomeração em meio à pandemia. Lembrado pelos manifestantes, Lula fica em silêncio

A oposição ao presidente Jair Bolsonaro obteve importante vitória neste sábado, 29 de maio, ao conseguir levar multidões às ruas em dezenas de cidades do Brasil para protestar contra o Governo e tentar reavivar a pauta do impeachment do mandatário de ultradireita ―uma proposta que cresce em aprovação popular, mas ainda esbarra na resiliência da base bolsonarista, tanto social como parlamentar. Na avenida Paulista, termômetro de referência desde 2013 para medir a temperatura da opinião pública e a capacidade de mobilização, centenas de milhares ocuparam várias quadras da principal via de São Paulo. “Não é mole não, tem dinheiro pra milícia mas não tem vacinação!”, cantaram repetidas vezes os manifestantes. Os atos foram convocados pela frente Povo sem Medo, frente Brasil Popular e a Coalizão Negra por Direitos, organizações que congregam centenas de movimentos sociais. Os partidos políticos de esquerda e sindicatos também os respaldaram, mas com graus variados de envolvimento, diante do dilema de se manifestar em plena pandemia do coronavírus, que já deixou mais de 460.000 brasileiros mortos. Lembrado nos atos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), principal nome da esquerda para o embate com Bolsonaro em 2022, não se pronunciou.

A expectativa agora é que o calor das ruas embale a pressão sobre o Governo feita pela CPI da Pandemia no Senado, que vem apurando a gestão errática e negacionista da crise sanitária por Jair Bolsonaro —desde o início da crise, ele boicota tanto medidas de isolamento social como a campanha de vacinação em massa. Guilherme Boulos (PSOL), coordenador da frente Povo sem Medo e uma das lideranças da esquerda que mais se empenharam na convocatória dos protestos, disse esperar que os atos abrissem o caminho em direção ao impeachment, que ele mesmo admitiu, em entrevista ao EL PAÍS um dia antes, não ser o “natural” neste momento. “Os atos foram um sucesso, lotados no Brasil inteiro, e deram a voz da grade maioria do povo brasileiro, que é ‘fora Bolsonaro, impeachment já’”, avaliou após o ato da Paulista. “Ninguém, é claro, queria estar nas ruas numa pandemia, mas as pessoas vieram por falta de alternativa e porque lutar para acabar com genocídio é também um serviço essencial”, completou.

As manifestações deste sábado produziram as imagens mais contundentes desde aquelas pedindo pela queda do ex-presidente Michel Temer em 2016 e 2017 ou a convocatória feminista pelo “ele não”, da campanha de 2018 —mesmo considerando as limitações da pandemia e a precariedade das medições de público. A questão, agora, é saber se o clamor capitaneado pela esquerda se sustenta e gera outras mobilizações durante este ano, como ocorreu ao longo de 2015 e 2016 pela destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). O pulso popular é essencial na equação, porque Bolsonaro ainda possui no mínimo mais de dois dígitos de aprovação, segundo as últimas pesquisas de opinião. O nível é baixo, mas ainda suficiente para mantê-lo no poder.

Em São Paulo, o ato na avenida Paulista começou por volta de 16h na altura do MASP. Uma hora depois avançava rapidamente pela via mais importante de São Paulo e descia a rua da Consolação em direção à praça Roosevelt —onde a dispersão ocorreu por volta de 20h de forma pacífica e sem violência policial, como ocorrera no Recife mais cedo, levantando mais uma vez o debate sobre a influência bolsonarista nas forças de segurança. A rua estava colorida e majoritariamente jovem, com pessoas portando bandeiras de partidos, de sindicatos e de movimentos sociais. Também havia muita gente sem vínculo com organizações portando cartazes nos quais demonstravam a revolta com Bolsonaro. “Estou exausta de ficar assistindo de casa e esperando uma resposta ao que a gente precisa. Eu me coloco em risco hoje porque é muito cansaço e muita indignação”, explicou a artista plástica Natalia Espada, de 34 anos, com cartaz nas costas em que dizia “O SUS salva vidas, ele não”.

Além do impeachment de Bolsonaro, os organizadores também impulsionaram outras demandas, como a aceleração da vacinação contra a covid-19, o retorno do auxílio emergencial de 600 reais (o valor pago agora é menos da metade), a pauta antirracista e a luta contra violência policial. “Estou na rua porque não temos mais condições de seguir nesse estado, sem nenhum tipo de governo administrando efetivamente, mas também porque me entendo como mulher negra e da periferia”, explica a agente de saúde Talita Gomes dos Reis, de 36 anos. “Somos nós, nas periferias, que estamos sofrendo mais com o vírus. Estamos trabalhando, pegando ônibus, pegando metro, sem o direito de manter o isolamento”, acrescenta. Ela também explica como a pauta antirracista e o “fora Bolsonaro” se encontram: “Se ocorre uma quebra democrática, nós, a base da pirâmide, seremos os primeiros atingidos, e a polícia vem mais agressiva, mais violenta…”.

Ao longo de todo o protesto os organizadores orientavam os manifestantes a manter medidas de segurança. “Hoje é sem beijinho, sem beber e sem fumar. Vamos proteger nossas vidas”, diziam do alto do carro de som. E a orientação parece ter surtido efeito: a maioria dos manifestantes, em contraste com os atos bolsonaristas, estavam usando máscara PFF2 ou duas máscaras no rosto —e muitos ainda levaram faceshield. O distanciamento social também foi possível em alguns pontos, mas a aglomeração se mostrou inevitável durante a concentração no MASP, onde estavam os carros de som e um gigante boneco inflável que criticava o presidente.

Tatiana e Milena Martins, mãe e filha, decidiram que valia a pena se arriscar. “É inaceitável tudo o que está acontecendo, apesar do medo a gente precisa se movimentar. Não podemos aceitar um presidente num país como o nosso com esse pensamento reacionário e retrógrado”, explica a mais velha, que tem 44 anos e trabalha no comércio varejista. A mais nova, uma adolescente de 15 anos, se manteve isolada durante toda a crise sanitária. “Estou no primeiro ano do Ensino Médio e está tudo bem difícil. Estou estudando feito uma louca e não sei nem se vai ter universidade para eu fazer”, explica. “Estou aqui por revolta.”

Mobilização e 2022
Ao todo, 109 municípios de 26 unidades federativas do Brasil —a única exceção foi o Acre— se uniram para demonstrar a insatisfação majoritária com o atual Governo. Os atos foram apoiados por todos os partidos de esquerda, mas ocorreram sem o envolvimento direto deles e dos maiores sindicatos. Trabalhadores sindicalizados, como os da educação, negociam a permanência do isolamento social e fazem greve. Já as lideranças de esquerda andam numa corda bamba: apesar de verem a necessidade de se mobilizar nas ruas, uma terceira onda da pandemia começa a atingir o país. Não querem ser relacionados com a quebra das medidas de proteção.

A hesitação também acontece porque buscam se diferenciar do presidente e de seus seguidores, que desde o ano passado protagonizam todo tipo de atos como se não houvesse uma crise sanitária. Com multidões e sem máscaras, as marchas bolsonaristas contra as medidas de confinamento, o Supremo Tribunal Federal, os governadores e a favor do presidente têm sido uma das tônicas da pandemia no Brasil.

Das vozes mais ausentes neste sábado, a principal foi a do ex-presidente Lula. Com as duas condenações na Operação Lava Jato anuladas pelo Supremo, o petista recuperou seus direitos políticos e vem mostrando força nas pesquisas de intenções de voto para 2022. Muito lembrado nas ruas, seu perfil nas redes sociais sequer demonstrou neste sábado apoio aos atos. Além do temor de ser responsabilizado pelo recrudescimento da pandemia, outra hipótese levantada é que, ao PT, em vantagem na corrida pelo Planalto no momento, interessa menos embarcar num impeachment incerto do que sangrar Bolsonaro até o ano que vem. O ex-ministro Ciro Gomes (PDT), outro presidenciável, também evitou se envolver diretamente. Em vídeo publicado no dia anterior, demonstrou apoio os manifestantes e suas demandas, ao mesmo tempo que ressaltava a importância de ficar em casa.

“Conheço gente que se arrepende de ter votado no Bolsonaro, mas não sei se vai votar no Lula”, explica a professora Fernanda Capello, de 33 anos, que foi ao ato contra o presidente no Rio de Janeiro, onde havia um grade boneco inflável do petista. “Tive que vir porque acho que se não dermos um empurrãozinho, temo que Bolsonaro não vá embora”, acrescenta.

Outros manifestantes cariocas também perceberam uma certa mudança no ânimo do público: “Começo a ver gente com vergonha de ter votado nulo [nas eleições de 2018], que foi como votar em Bolsonaro”, explica Vanessa Jardim, 53 anos e produtora executiva da indústria cinematográfica, exibindo com orgulho a sigla PT em sua máscara vermelha. “Estou feliz porque todos estão com máscara, sem aglomeração. Isso é mais importante do que o tamanho [do protesto]”, diz Luana Souza, de 26 anos. “Temos que acabar com essa inércia de que nada pode ser feito para expulsá-lo”, destaca a amiga Fernanda Gomes, de 32 anos.

No Recife, o ato foi dispersado por volta de 13h por meio de ação violenta da Polícia Militar. Um homem que não estava na manifestação foi atingido por uma bala de borracha e perdeu o olho. Já a vereadora Liana Cirne (PT) foi agredida com spray de pimenta no rosto ao tentar frear o avanço da polícia. Com a carteira de vereadora em punho, buscou parar uma viatura quando foi atacada por um policial que, de acordo com ela, não estava identificado. “Agrediram a minha chefe de gabinete e o motorista também”, afirmou ela ao EL PAÍS, por telefone, enquanto comprava soro fisiológico para atenuar as queimaduras causadas pela pimenta. “Corremos para o carro e ficamos uns 15 minutos parados, no meio da rua, sem poder nem dirigir e nem pedir socorro, porque não enxergávamos nada por causa do spray”, conta. A repressão desatou uma crise entre o Governo pernambucano, que promete investigar a ação, e a polícia.

Os atos do #29MForaBolsonaro e #29MPovoNasRuas, como foram chamados nas redes sociais, também se impuseram na Internet e foram os assuntos mais comentados deste sábado, ao menos no Twitter, com nomes da política lado a lado com novos potentes influencers —o ex-BBB Gil Nogueira (Gil da Vigor) esteve entre os principais polos digitais de mobilização. Nesses 14 meses de crise sanitária, os protestos contra o mandatário de extrema direita se limitaram basicamente às redes e aos panelaços. Até agora, a esquerda, salvo exceções como nos protestos antirracistas ou protagonizados por torcidas de futebol, no ano passado, vinha se recusando a se mobilizar para evitar a propagação da doença. Ao menos neste sábado, a retomada das ruas aconteceu.

 

Fonte: EL País
Créditos: EL País