Na última década, o Brasil vivenciou a gestação, o apogeu e o declínio de uma “Revolução Judiciarista” na opinião do professor e pesquisador Christian Edward Cyril Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Formado em direito e especializado em ciência política, ele define o termo como uma espécie de absolutismo ilustrado, que legitimou a atuação política do poder jurídico. Lynch cita a Operação Lava Jato como máxima expressão desse fenômeno, que, em sua concepção, foi capitaneado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O cenário de terra arrasada deixado pelo protagonismo das decisões do Judiciário, explica o professor em entrevista ao EL PAÍS, teria sido decisivo para a ascensão da extrema direita no país e, também, para o colapso da esquerda depois da prisão de seu último grande expoente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Pergunta. Como a Lava Jato e o STF se encaixam neste seu conceito de “Revolução Judiciarista”?
Resposta. A politização do Judiciário e do Ministério Público acontece na esteira do apodrecimento do sistema político. Mas esse processo não é capitaneado pela Lava Jato, mas sim pelo Supremo e o Ministério Público. Seria impossível implementar a Lava Jato não fosse o respaldo do Rodrigo Janot [ex-procurador-geral da República] e dos ministros do STF. A Lava Jato é o apogeu da Revolução Judiciarista, que ganhou forma com liminares para suspender a posse da filha do Roberto Jefferson, do Lula como ministro e a ordem de afastamento contra o presidente da Câmara [Eduardo Cunha]. Antes, o STF se limitava a exercer o poder moderador e proteger a democracia dos exageros autoritários, como um guardião dos valores republicanos. Mas, após assumir a hegemonia até então exercida pelo Exército, a partir da Constituição de 88, o Judiciário gradativamente extrai atribuições de outros poderes. No auge desse processo, o grau de terra arrasada foi tão grande que colocou em descrédito todo o espectro político.
P. Por que o processo não se consolidou após a ascensão do poder judiciário?
R. A Lava Jato deixou terra arrasada na política. Depois de devastar os poderes Executivo e Legislativo, restou apenas o Judiciário, que se dividiu e também se desmoralizou. Nesse cenário, o bolsonarismo ficou sozinho como única força organizada. Todas as outras foram destroçadas, sobretudo a esquerda.
P. Acredita que, depois de tantos anos em torno do poder, partidos de esquerda perderam capacidade de articulação?
R. Enquanto Lula está preso, a esquerda não reage nem consegue fazer nada. Ao longo do tempo em que o PT esteve no Governo, houve acúmulo de desgastes e brigas com muitos aliados. A partir daí, ela se mostra incapaz de traçar um plano de aglutinação e alianças para fazer frente ao bolsonarismo, que deveria incluir até mesmo generais e setores das Forças Armadas. Parece estar esperando o Lula ser solto para saber qual é o próximo passo. A esquerda ficou acéfala. Só vai conseguir se articular outra vez quando a atual situação se desgastar. E, aparentemente, isso ainda vai demorar.
P. Os liberais parecem buscar um encaixe nessa configuração polarizada. Como enxerga as recentes autocríticas de correntes como o Movimento Brasil Livre (MBL), por exemplo, que reconhecem ter contribuído para normalizar a agressividade na política?
R. O liberalismo é uma ideologia cosmopolita, que, ao chegar à América Latina, sentiu um desconforto ao não reconhecer nessa sociedade o modelo de indivíduo liberal. Erroneamente, tentou se estabelecer como arquétipo as práticas estabelecidas nos Estados Unidos e na Inglaterra. Por isso, os liberais continuam olhando com estranheza para o povo, como se fosse gente patrimonialista, sem cultura e sem capacidade para entender o que é a liberdade. Esse é um problema crônico dos liberais brasileiros. Com ranço elitista, utiliza-se o eufemismo de sociedade civil para se referir à elite do povo. O liberalismo de direita no Brasil deixou de ter caráter doutrinário para se consolidar como um ideal de liberdade sem apreço por igualdade, sem sensibilidade social, onde se encaixam movimentos como o MBL e o Partido Novo. É natural que se sintam desconfortáveis diante de um Governo que só tem o Paulo Guedes como representante liberal. Mas isso só acontece porque a esquerda praticamente desapareceu. Caso ela se revigore, os grupos ditos liberais voltarão a colar no bolsonarismo.
P. Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça, não poderia ser considerado um liberal?
R. Moro se reposicionou. Antes, ele era percebido pela maioria das pessoas como juiz suprapartidário, liberal, de centro, na linha de frente do combate à corrupção. Sua funcionalidade era botar abaixo todo o establishment ou, pelo menos, a situação política que governou o país de 2003 a 2016. Quando vai para o Governo, ele se mostra oportunista —não no sentido pejorativo da palavra. Mas é a partir da divulgação das mensagens pelo The Intercept que o ministro ficou mais à vontade. Aderiu de vez ao bolsonarismo e se tornou um reacionário. Agora, ele se afasta da figura de juiz e, definitivamente, faz parte do Governo como um prócer do bolsonarismo. A Vaza Jato desacreditou Moro nos setores liberais e de centro, onde sempre teve boa cotação. Abandonado por essas alas, suas raízes ficaram menos espalhadas, mas muito mais aprofundadas como um jurista bolsonarista. E ele está cada vez mais seguro e confortável em sua nova posição.
P. Mas os vazamentos não complicam seus planos dentro do Governo?
R. O que ele sempre quis é chegar ao STF. Hoje, é muito melhor ser ministro do Supremo que presidente da República. O Moro não poderia ser nomeado ao Supremo sem antes pagar pedágio no ministério da Justiça. Não existe precedente de juiz de primeira instância virar ministro. Ele não se encaixava nos pré-requisitos. Com sua integração ao Governo, porém, o presidente acabou transformando a Lava Jato em obra do bolsonarismo. Pelo cenário de polarização, as mensagens vazadas têm uma repercussão muito menor do que poderiam ter para mudar a opinião pública. As pessoas se tornaram resistentes aos fatos. Não existe mais verdade. Essa é a arma de combate cotidiano da extrema direita.
P. Os filhos de Bolsonaro rejeitam o rótulo de extrema direita atribuído ao Governo do pai. Como você vê isso?
R. Não enxergo nada além do Bolsonaro à extrema direita, que é um conceito que muda com o tempo e não significa a mesma coisa em todos os países. Qualquer extremo se inclina ao autoritarismo. Na Venezuela, Chávez e Maduro instituíram um Governo de extrema esquerda, que é bem diferente do extremismo da Revolução Russa. Já a extrema direita não se resume a Hitler, Franco ou Salazar. Tecnicamente, Bolsonaro e seus filhos estão na extrema direita do espectro político brasileiro. Se o atual Governo sair da extrema direita para a direita tradicional em 2022, já terá sido um grande avanço.
P. Mesmo que radicalize ainda mais o discurso, Bolsonaro seguiria com capital político para uma eventual reeleição?
R. O bolsonarismo se constrói como um PT ao contrário. Algo como “se o PT fez, Bolsonaro também pode fazer”. Ele não tem projeto de Governo, mas apenas de poder. Seu único plano é manter o domínio sobre 30% do eleitorado e se tornar uma espécie de Lula de direita nos próximos anos. É um anti-Lula, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução em modo reverso. Pro PT, isso representa um beco sem saída. O partido está obrigado à radicalização caso queira manter a hegemonia da esquerda, competir no discurso e fazer contraponto ao bolsonarismo. Enquanto isso, Bolsonaro segue cultivando o eleitorado fiel com sua cota diária de paranoias e disparates, controlando as narrativas nas bolhas ideológicas.
P. As repercussões políticas da Lava Jato foram determinantes para sua vitória?
R. Para restabelecer a ordem em meio ao esfacelamento do sistema político, a coalizão formada em torno do Bolsonaro é muito semelhante à de 1964, com militares estatistas, liberais e reacionários, liderados por um presidente disposto a resgatar o Brasil profundo do passado. O conservadorismo instalado pelo Governo não será desmoralizado de um dia para o outro. Na época da ditadura, foram necessários 10 anos para que a sociedade começasse a desalojar os militares.
P. O que viria a ser o resgate de um “Brasil profundo”?
R. É um discurso rudimentar e infantil, que promete destruir tudo aquilo que fizeram de mal ao país. Para Bolsonaro, Rio de Janeiro e São Paulo soam como lugares subversivos, em que a solução para proteger o cidadão é levar o comando de órgãos como a Ancine para Brasília. Sua obsessão é reduzir o povo à figura de um caminhoneiro provedor, o pai de família cumpridor de seus deveres e conservador, que todas as noites reúne os filhos e a mulher em volta da mesa.
Fonte: El País
Créditos: BREILLER PIRES