Por Fabricia Oliveira
No último sábado (24), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), acatou uma ação proibindo a entrada de missões religiosas em comunidades indígenas isoladas. Em julho de 2020 Barroso já havia editado uma medida para restringir e salvaguardar essas comunidades e suas respectivas áreas, vedando o acesso de quaisquer terceiros. A ação atual, organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em conjunto com o Partido dos Trabalhadores (PT), agora inclui na lista de restrições de maneira mais específica as ditas missões religiosas.
A ação vem em um contexto de pandemia do novo coronavírus – cujos efeitos dramáticos podem ser sentidos pela sociedade como um todo, em especial pela comunidade indígena, e cujo abandono pelos olhos governamentais é histórico e notório é agravado pelo sucateamento da Funai, deixando a comunidade desamparada para enfrentar, além dos já comuns embates com madeireiros, garimpeiros e latifundiários um problema menos conhecido: as missões religiosas.
Não é de hoje que essas missões adentram as regiões amazônicas e pantaneiras, onde se encontram a maioria dos territórios indígenas, levantando a bandeira de uma nova catequização das comunidades originárias. De fato isso ocorre desde a chegada das primeiras esquadras portuguesas nestas praias tropicais; mas vêm ganhando uma nova roupagem desde meados da década de 40, com a chegada de missões advindas dos Estados Unidos, como a News Tribes Mission (hoje Ethnos360), e que apenas se intensificaram nesses últimos 80 anos.
Diante da decisão de Barroso, houve naturalmente uma resposta da chamada Frente Parlamentar Evangélica da Câmara Federal. Em nota, a chamada Bancada da Bíblia, taxou a medida como uma perseguição à cristandade, que fere os direitos constitucionais de liberdade de credo e religião, e afirmou que as ações religiosas apenas trazem benefícios às comunidades, nas “áreas de saúde, da educação e da subsistência”.
Primeiro é necessário ressaltar que a decisão se aplica às áreas onde residem povos indígenas isolados. Segundo a Funai, indígenas isolados são grupos indígenas que não estabeleceram contato permanente com a população nacional, diferenciando-se dos povos indígenas que mantêm contato antigo e intenso com os não-índios. Atualmente existe o registro de 114 grupos de isolados, dos quais 28 estão confirmados, espalhados em 7 reservas, a maioria na região amazônica.
O isolamento desses povos é um direito previsto na Constituição Federal, que no art. 231 reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e o decreto nº 1775, de 1996, estabelece restrições de uso de territórios habitados por eles habitados, impedimento o ingresso e uso desses territórios por terceiros.
A Funai, através da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (GIIRC) e das Frentes de Proteção Etnoambiental, é a principal responsável pela manutenção do direito ao isolamento dessas tribos, cabendo a ela e aos indígenas e entidades representativas deliberar quem transita pelos seus territórios.
Apesar das desculpas de boas intenções, os casos de contato de missões religiosas com povos indígenas isolados são em geral mais danosos que benéficos. Por se tratarem de povos sem contato com não-indígenas, são extremamente vulneráveis à doenças, de modo que uma simples infecção para nós, como sarampo ou uma gripe, pode ser fatal.
Casos assim são históricos: vírus e bactérias trazidos por europeus mataram mais a população ameríndia nativa do que qualquer arma. E casos modernos como o dos Nambikwara – que viram morrer 90% de sua população de dez mil indivíduos devido a surtos de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia – justificam a preocupação com a presença de missões ou quaisquer terceiros transitando e contatando esses povos sem vigilância adequada. Ou seja, a vedação do contato com esses povos, além de um direito constitucional, é uma questão primariamente sanitária.
Entidades indígenas também chamam atenção para a prática da catequização em si, essencialmente danosa para a convivência da comunidade, uma vez que os indígenas convertidos passam a demonizar a própria cultura, censurando costumes e reprovando práticas como os rituais e as bebidas fermentadas, que são imprescindíveis para a cultura e religião desses povos.
Apesar de afirmarem estar trabalhando dentro das regras estabelecidas pela Funai, casos de missionários trespassando os limites das áreas sem autorização e até mesmo utilizando aviões ou helicópteros para tal não são raros. Se realmente trabalhassem em conformidade com a Funai e suas diretrizes, não seria tão frequente as reclamações de funcionários sobre o assédio que o órgão vem sofrendo por essas entidades.
Os assédios têm se intensificado no decorrer do atual Governo, com o esvaziamento progressivo da Funai e trocas de cargos por motivações duvidosas, como a exoneração em outubro de 2019, sem motivações aparentes, do presidente do órgão, Bruno Pereira, um sertanista experiente, e sua posterior troca por um delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier, ligado à bancada ruralista.
Outra movimentação que gerou polêmica foi a eleição de um ex-missionário, Ricardo Lopes Dias, para coordenador na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), em fevereiro de 2020. Lopes, que tinha ligações com a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), mas que afirmava não atuar há mais de 10 anos, foi exonerado em novembro, após denúncias de omissão no combate à pandemia de covid-19 junto às comunidades indígenas e ser acusado de viabilizar a entrada de missionários em áreas de reserva.
Por fim, a decisão de Barroso demonstra ser nada mais que um movimento para salvaguardar o que está na Carta Magna, que é função basilar do STF. Querer que o STF se baseie em qualquer documento, principalmente de cunhos religiosos, como a Bíblia, é sugerir que o judiciário siga o modelo de governos fundamentalistas, como o Talibã. As reivindicações da Bancada da Bíblia acabam não se fundamentando, nem ética, nem humanitária, nem constitucionalmente. Se de fato a intenção fosse apoiar e agir pelo interesse das comunidades originárias, fariam melhor gastando suas energias pressionando o Governo para cumprir seu papel previsto na CF, de proteger e preservar essas comunidades; ou se uniriam às vozes dos cerca de 6000 indígenas de várias etnias que tomaram a Esplanada dos Ministérios protestando contra a votação do Marco Temporal.
O fato é que, como os povos isolados se mantêm de forma autônoma, ou seja, subsistem dos recursos naturais disponíveis ao seu entorno, a presença deles significa também a manutenção de uma área de reserva protegida. Um verdadeiro empecilho para o governo, já que Bolsonaro nunca escondeu sua predileção pela indústria extrativista e latifundiária, e seu olhar para a Amazônia como mera moeda de mercado. A desestabilidade causada pela presença dessas missões religiosas nas comunidades ou até mesmo o eventual expurgo gerado por possíveis doenças, não parece ser um problema para o atual governo; pelo contrário, é um plano de ação.
Fonte: Fabricia Oliveira
Créditos: Fabricia Oliveira