O hors-concours é Enéas Carneiro, mistura da intransigência de um Médici com o vernáculo de Jânio Quadros, acrescido do look que marqueteiro nenhum aprovaria.
Essa classe de candidatos prescinde de marketing para cair, literalmente, nas graças do povo. Quem usava fralda no tempo do “meu nome é Enéas” terá de apreciar o estilo inconfundível no YouTube, mas pode seguir ao vivo seus pálidos sucessores.
O novo darling nacional é Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos. O ex-bombeiro magnetizou as redes sociais desde o começo do debate na Band, ao ler a Bíblia. O apreço ao livro sagrado se repetiu na RedeTV! e, entre um debate e outro, o cabo repetiu também o gesto de Suplicy e Marina Silva em eleições passadas, recolhendo-se em retiro espiritual.
Mas foi com o ferrenho combate à Ursal que Daciolo derrubou a internet. A nação continental socialista consubstanciou-se em mascote, passaporte e seleção de futebol. O candidato arrebatou pelo achincalhe.
Também nisto, mostrou-se membro da escola Enéas. Proselitistas e analistas do outro extremo do espectro político debocharam. Daciolo surgiu, como Bolsonaro —e antes Enéas—, como “inacreditável”, oriundo de um mundo paralelo, abissal, o do ridículo.
A galhofa desopilou o fígado, mas se furtou de explicar o fenômeno. Sobra gente ilustrada a crer que o apoio a esses políticos ultraconservadores nasce de loucura ou ignorância.
Ou bem os eleitores partilhariam o universo mental de seus candidatos, na linha “maluco vota em maluco”, ou careceriam da “consciência” de seus reais interesses e caberia aos iluministas libertá-los do conservadorismo.
Os ultraconservadores não são —ao menos não todos— insanos ou iludidos. Tampouco são poucos ou novos. Auferem votos desde o fim do regime militar. Enéas abriu a linhagem, concorrendo à Presidência em 1989 e, em 1994, foi o terceiro em votos.
Em tempos pré-internet, carregou 7% do eleitorado com seus 77 segundos de TV. Fez menos sucesso em 1998, mas seu legado frutificou. Em 2002, coube ao evangélico Garotinho levar Deus e a pátria à política e repetir o terceiro lugar, com respeitáveis 17% nas urnas.
O vigor ultraconservador murchou em 2006, mas o democrata cristão Eymael manteve acesa a chama, com jingle inesquecível. Em 2010, vieram ladeá-lo novos defensores da família, da moral e dos bons costumes, caso de Levy Fidelix e do Pastor Everaldo, que se apresentaram na última presidencial.
Esta trajetória eleitoral do campo ultraconservador tem baixos e altos —como a da esquerda— mas é consistente e ininterrupta. Assim, não devia surpreender a fatia generosa de votantes que atrai este ano.
Enquetes de diferentes institutos convergem na caracterização deste apoio ultraconservador. Os votos de Bolsonaro crescem entre varões, jovens (até os 40 anos), de renda alta e são bolsominions 27% dos eleitores com diploma superior.
Para estes milhões que têm nas igrejas seus sustentáculos moral, afetivo e financeiro, o evangelho de Daciolo suscita mais empatia que escárnio. Para quem se casa, se emprega e se salva orando ao Senhor, o discurso político religioso está longe de ridículo. A religião é sua lente para ler a realidade, operar no cotidiano e decidir o voto.
Aqui, como em toda parte e em todos os tempos, nem todos querem posturas, lideranças e políticas igualitárias, tolerantes e democráticas. Há cidadãos que aderem racionalmente a valores tradicionais para orientá-los na vida privada e no mundo público.
Ao ignorar esta parte da sociedade, a estratégia de debochar dos ultraconservadores sai pela culatra. O caso mais espetacular é Donald Trump. A mídia desdenhou do candidato e se furtou de entender as razões de seu eleitorado. A esquerda tampouco o fez, ocupada em trocar chumbo entre si.
Trump é prova de que “picarescos” vencem eleição porque não são “picarescos” para todo mundo. Em vez de rir de Daciolo e decretar loucos ou ignorantes os eleitores de Bolsonaro, é preciso entender sua lógica, suas motivações, seus medos. Não basta se estarrecer ou zombar.
Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Angela Alonso