Não há meia verdade. Se uma mentira, por mais que tenha elementos reais, é contada, ela não deixa de ser uma mentira.
Quando criança eu mentia muito. Misturava meu imaginário e o que via na TV para inventar histórias fantásticas. Acredito que era meu desejo de ser escritora antes de ter habilidade para o papel. Ou era só uma criança mentirosa mesmo. O que sei é que, depois de um tempo, ninguém mais acreditava em nada que eu dizia.
Passada a época da culpa cristã e do diabinho no ombro, criei uma cota de mentiras pra mim mesma. São mais ou menos cinco por ano que não incluem as mentiras literárias, essas são mais que permitidas. A cota me ajuda a não gastar com qualquer coisa, qualquer um. É preciso um acontecimento fantástico para que da minha boca saiam inverdades.
Quando a gente passa a buscar se tornar um ser humano melhor, é difícil deixar por perto quem não se preocupa em dissolver seus karmas. Por isso é tão difícil pra mim aceitar pessoas que mentem, sejam as mentiras necessárias ou aquelas bobas. Sabe quando a pessoa diz que vai chegar em 10 minutos sabendo que será em 30? Se mente por algo tão bobo quanto 20 minutos, poderia matar a própria mãe e dizer que não foi ela.
Em ano eleitoral fica ainda mais complicado decifrar, escolher, ou não cair no limbo de ficar com o menos pior, o que mente menos, o que “rouba mas faz”.
Que desalento!
Só existe um ser humano na terra que não mente: o homem, hétero, cis, branco e com referências de outros homens, héteros, cis e brancos.
Às mulheres cabe o peso do questionamento. “Será que ele disse isso mesmo assim do jeito que você está contando? ” “Será que ele te tocou de verdade ou você que está muito sensível?”
Sempre precisamos provar nossa verdade e, enquanto isso, em sua maioria os homens não precisam provar nada, especialmente os assediadores, os agressores, os estupradores. Há uma verdade absoluta neles quando se trata de quem está mentindo.
E para as mulheres que rebatem quando os assediadores são denunciados, eu digo: isso não é sobre você, vai ver você não faz parte do padrão. Pense por um minuto que o padrão dele possa ser o seguinte: as meninas do primeiro período, bolsistas empolgadas por fazer um dos cursos de cinema mais caros do país, jovens de periferia com uma trajetória parecida com a do professor, de quem ele pode se aproximar com a desculpa de ajudar a realizar seu sonho de cineasta, diretora, roteirista, num mercado tão escroto e fechado em que você só entra se tiver indicação.
“Ah, mas eu já passei horas numa ilha de edição de madrugada com ele e ele me respeitou”. É que assédio não é sobre ficar sozinho com uma mulher, tanto que muitos casos acontecem em ruas movimentadas, assédio é sobre poder.
Enquanto isso, 13 mulheres são questionadas sem nenhuma cerimônia, porque, afinal, “eu conheço ele há anos”, “isso é inveja” ou “o feminismo é inoportuno”. Imagina 13 alunas que se juntam contra um professor por sentir inveja dele, como se fossem crianças mentirosas. Faz muito mais sentido do que acreditar que um homem usou do seu lugar de poder para assediar 13 jovens.
E, sim, nem todo homem é mentiroso, há os que acobertam as mentiras, há os que apoiam as mentiras e há os que se calam diante delas.
Fonte: O Globo
Créditos: O Globo