Bom de papo e de uma simpatia eletrizante, Fernando Morais cativou leitores no mundo inteiro a reboque de uma escrita elegante e sedutora. De sua pena afiada saíram, só para citar alguns títulos, sucessos como A Ilha (1971), Olga (1985), Chatô – o Rei do Brasil (1994), Na Toca dos Leões (2005) e O Mago, biografia do escritor Paulo Coelho. O mais novo rebento, o primeiro volume da trajetória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), lançado há poucos dias, está dando o que falar.
Fruto de 10 anos de trabalho, o livro, um best-seller antes mesmo de chegar às livrarias, virou alvo de pirataria nas redes sociais e saco de pancada da patrulha ideológica vigente. O motivo da polêmica? A abordagem tímida, segundo críticas de parte da parcela da imprensa, dada pelo autor a temas como a operação Lava Jato e às acusações de corrupção que pesam sobre o biografado.
“Estão todos com medo. O livro prova que eles (a imprensa) se comportaram de maneira canalha com o Lula e a favor do Moro”, defende-se o jornalista e escritor de 75 anos.
Com pouco mais de 440 páginas, o primeiro tomo relata, com riqueza de detalhes e informações preciosas, o lado humano do homem que se transformou em líder dos operários do ABC paulista e em fenômeno das massas. E que teve seu conceito mudado no meio do caminho por conta das experiências vividas e presenciadas pelo autor nos últimos momentos antes da prisão do ex-presidente em abril de 2018.
“O projeto inicial era fazer um livro que começasse na metamorfose dele de sindicalista para o Lula político”, conta Morais.
Os seis primeiros capítulos do livro Lula são cinematográficos, esclarecedores e arrebatadores, narrados de forma minuciosa e precisa por quem teve a oportunidade de estar no olho do furacão de acontecimentos ímpares da história recente da política brasileira.
“Antes de ser autor de livros, eu sou repórter, jornalista”, observa Morais. “Eu estava diante de uma tragédia política sem precedente na história do Brasil, não faria sentindo não contar”, diz.
Em entrevista ao Metrópoles, Fernando Morais, que vendeu seis milhões de livros e foi traduzido em 37 países, falou ainda sobre os dilemas e conflitos de um escritor, a biografia “engavetada” do político baiano Antônio Carlos Magalhães, com quem ele esteve e de quem ouviu as mais variadas histórias por nove anos, e sobre a “figura de ficção”, segundo avalia, do juiz Sergio Moro. “Moro vai desaparecer como se nunca tivesse existido”, provoca.
Confira as principais partes da entrevista:
O projeto
O Antônio Carlos Magalhães tinha acabado de morrer. Quando eu estava pronto para escrever a biografia dele, já esquentando as turbinas, esquentando a motocicleta para decolar, recebi a proposta de escrever o livro sobre o Lula, e era pegar ou largar, senão iam passar para outro.
O Lula me propôs uma ideia que ele não tinha muito bem na cabeça, mas sabia que não queria uma biografia, pelo menos no modelo que estamos habituados a ler. Deixei claro que ele não ia ler o livro, não ia ler os originais, que ia ler o livro com os leitores. Ele não relutou.
O projeto inicial que acertei com o Lula e com o editor Luiz Shwarcz (Cia das Letras) era fazer um livro que começasse na metamorfose dele de sindicalista para o Lula político, que se dá no começo dos anos 1980, quando ele vai preso pela primeira vez, até o momento em que ele entrega a faixa presidencial para a Dilma. Grudei em seu calcanhar logo depois que ele saiu da presidência, o acompanhando, literalmente no Brasil e fora do país por todos esses anos.
Isso acabou permitindo que eu testemunhasse o desenrolar da crise que começa em meados do primeiro governo Dilma e se agrava no segundo governo dela, que é quando é montado o golpe. Um golpe absolutamente original, golpe que contou com várias autorias, no qual se juntam setores do Ministério Público, da Justiça, da Polícia Federal, com apoio integral e empenho absoluto da grande imprensa, praticamente sem exceção.
Segundo volume
No segundo volume, eu vou retomar a partir do Lula na Constituinte, abordando as derrotas para a Presidência da República na disputa com o Collor e nas duas eleições perdidas para o Fernando Henrique, enfim a vitória para presidente, os dois governos dele – com as grandezas e as misérias –, a passagem para Dilma e o golpe contra ela, voltando à prisão dele e terminando na eleição deste ano. Tanto que o compromisso que assumi com a editora é que o volume será entregue em junho de 2023. Não importam quais sejam os resultados da eleição de 2022. Boa parte das informações está nos bancos de dados, claro, vou ter que falar com algumas pessoas, tem muita gente que eu não ouvi, mas já tenho muito material, como uma longa entrevista que fiz com o Antonio Palocci e outra com o (historiador britânico) Eric Hobsbawn, talvez a última entrevista dele dada em vida…
O lado humano do biografado
As pessoas estão carecas de saber sobre a infância do Lula, da viagem do pau de arara, que o pai teve duas famílias. Mas as pessoas mais jovens não sabem desses detalhes, que são muito ricos. Como o livro certamente vai sair no exterior, eu preciso contar para o estrangeiro quem é e de onde vem essa cara, o que foi a vida difícil dele. Uma coisa que precisa ficar clara: não escrevo sobre herói de bronze. Perde-se muito tempo e espanta muito o interesse dos jovens pelos personagens brasileiros, porque nas escolas ensinam sobre personagens de bronzes. As pessoas passam em frente a uma praça, veem uma gigantesca estátua de Duque de Caxias montando num cavalo, sem fazer a mais remota ideia de quem foi.
Novidades da biografia
O livro traz informações que ninguém tinha. Vou dar dois exemplos: o grampo que a Polícia Federal deixou na casa do Lula no dia da busca e apreensão, em 2016. A outra coisa é a infiltração da Federal dentro do sindicato, no andar em que estava o Lula, no dia em que se discutia se ele ia se entregar ou resistir à prisão. Tem mais coisa, detalhes sobre o que ele sentia no momento da prisão, o que ele pensava ou se desconjurou, praguejou para alguém…
Biografia de ACM na gaveta
Passei nove anos com o Antônio Carlos Magalhães, até a beira da morte dele. Não só gravei tudo com ele nesse tempo todo, como ele me deu os seus arquivos, os célebres arquivos do ACM, arquivos secretos que ele guardava em pastas em sua casa, trancadas à chave e que ele carregava no chaveiro. Fiz 10 viagens de Salvador para São Paulo carregando uma malinha no colo, no avião, que eu não tinha coragem de despachar, com a saborosíssima, cabeluda papelada que ele guardava, sobretudo, dos desafetos dele.
Propostas para adaptação
Já fui procurado por uma grande produtora de São Paulo que quer fazer uma minissérie sobre o ACM. Eu disse que topo, eu cheguei até pensar no ator para fazer ele, que é o (Antônio) Fagundes. Recebi outro dia o e-mail de um produtor cinematográfico sugerindo fazer um filme dos seis primeiros capítulos do livro do Lula, que abarca o período que vai da hora que o Moro decreta a prisão até o momento que ele apaga a luz no catre em Curitiba. Mas não quero pensar nisso agora, estou muito a sangue quente com relação ao livro…
Contra a fundação do PT
Eu acreditava que a tentativa de criação de um partido naquela circunstância ia rachar com a frente democrática, que era composta desde ex-guerrilheiros marxistas de várias tendências até empresários, como o Teotônio Vilela e Severo Gomes. Achava que o surgimento de um partido de esquerda ia fazer o jogo do Golbery (chefe da Casa Civil nos governos militares de Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo) e atrasar a volta da democracia. A história provou que eu estava errado, não só não atrasou o processo democrático, como é possível que tenha contribuído para acelerar…
Sobre as críticas da imprensa
Estão todos com medo. O livro prova com o levantamento comprado de um instituto de pesquisa que é voltado, exclusivamente, para medição de veículos de comunicação, que eles se comportaram de maneira canalha com o Lula e a favor do Moro. São gráficos aritméticos que estão no apêndice do livro. Eu, se fosse dono de jornal, começaria a ler o livro de trás para frente, porque lá está, provado, dia por dia, mês por mês, a conspiração contra o Lula. Estão todos com o rabo entre as pernas.
Moro é uma ameaça como terceira via
Desde o começo da Lava Jato que me refiro ao Moro como um personagem de ficção, de um livro chamado Relatos de um Náufrago, do Gabriel Garcia Márquez, um personagem que foi transformado em herói da pátria, beijado pelas rainhas da beleza, ficou rico com a publicidade e que depois acabou abandonado pelo governo e esquecido para sempre. Esse é o Moro. O Moro vai evaporar nessas eleições. Sergio Moro que se prepare para um processo absolutamente novo na política, processo químico, que é a evaporação. Espero que o Cabo Daciolo (bombeiro que se candidatou a presidente na última eleição), que é o meu filósofo preferido, dispute as eleições presidenciais, só para o Moro ficar atrás dele. O Moro vai desaparecer como se nunca tivesse existido.
Fonte: Metrópoles
Créditos: Metrópoles