O desenho do Ministério de Jair Bolsonaro lembra o de João Figueiredo; sobretudo na porção sob influência militar direta: aquela coordenada pelo general Heleno, a que bebe na tradição da engenharia do Exército e que pode ser definida como desenvolvimentista, abarcando duas pastas que se esboçam monumentais, a da Infraestrutura (que conteria Transportes) e a das Cidades (que abrigaria Integração Nacional). Trata-se de escopo ministerial que, por definição, pressiona por investimentos, um pacote de obras públicas vultoso, mas que só será funcional sob um governo com fôlego para gastos próprios e com credibilidade para atrair parceiros na iniciativa privada.
Não há mágica para se chegar a tal condição. Sim, falo da reforma da Previdência; e de uma para valer, que dependa de emenda constitucional — e que poderia ser a que tramita na Câmara, a de Michel Temer, já mastigada pelo Parlamento e suficiente para as demandas atuais do Brasil.
O caminho é simples — o que não quer dizer fácil: se o enfrentamento do drama fiscal for mesmo prioritário para Bolsonaro, caber-lhe-á fechar imediatamente com um projeto reformista, o objeto sobre o qual apregoar, e então ir a campo fazer política. Dá trabalho. No caso de uma reforma que toca no bolso do funcionalismo público, o empenho mobilizará reação corporativa, incompreensão da sociedade e, pois, impopularidade. Mas, afinal, com persistência, colhe-se os frutos. Se serve de consolo, não há alternativa: tudo quanto Bolsonaro deseje como legado de sua gestão só será possível com o controle da praga fiscal.
Quando a liderança tem clareza sobre o que quer, o trânsito fica menos obstruído. Bolsonaro precisa de um projeto de reforma previdenciária para chamar de seu — e que não tenha orgulho se for o caso de perfilhar o de outro. Desconheço quem se comprometa com algo ao mesmo vago e impopular. É uma obviedade. Qual o programa do futuro governo para essa reforma? Havendo um, haverá chance de engajamento. E, havendo um, engajamento só haverá com conversa.
Quem, no núcleo duro do bolsonarismo, baterá perna no Congresso para convencer os parlamentares acerca de um projeto, seja qual for, impopular? Estará Onyx Lorenzoni à altura da missão? Identifico um déficit de articulação política no governo em formação, e também uma incompreensão — a mesma que criminalizou a atividade política — acerca do que seja a democracia representativa. Porque, se é possível e necessário melhorar a qualidade da operação política nesta República, certo é que não haverá República se se prescindir da política.
Seguro é também que um governante e seus líderes não têm o direito de escolher — logo, de discriminar — interlocutores no Parlamento, todos igualmente representantes do povo. Qualquer que seja a restrição político-ideológica que um governante tenha a fulano ou seu partido, não pode inviabilizar o diálogo — não sem que se incorra em irresponsabilidade para com a cidadania que os empoderou a todos.
O presidente eleito deveria convidar Paulo Hartung, governador do Espírito Santo, para um papo. E para ouvi-lo; talvez o mais competente homem público em atividade no país. Certamente, entre os políticos na ativa, o melhor gestor; também reconhecido como hábil operador da política. O Espírito Santo é um estado pequeno, de pouco peso econômico, daí por que se preste menor atenção ao que se desenrola ali. Convém, no entanto, estudar a experiência de Hartung. O homem tem uma obra, erguida no mundo real, aquele em que é necessário buscar consenso, negociar, ceder para avançar; conjunto de conquistas públicas cujo mais relevante fundamento consiste na forma como domou o touro fiscal capixaba — o mesmo animal, a variar de tamanho, que investe contra quase todos os estados brasileiros.
Hartung governou o Espírito Santo duas vezes. Em ambas, amansou o bicho, a cada vez com uma abordagem: na primeira, enfrentando o crime organizado, que assaltara a capacidade de arrecadação do estado por meio de uma indústria de incentivos fiscais, cuidou de aumentar as receitas; na segunda, desagradando a interesses do alto funcionalismo estadual, tratou de cortar despesas. Em ambas, trabalhou com o mesmo método: com um projeto de reforma claro, seu, em função do qual aglutinar, foi a campo para convencer e conquistar.
Ao fim de seu mandato, colhe os frutos: nota A do Tesouro Nacional; primeiro lugar para o ensino médio estadual no Ideb. Não é verdade que quem enfrente o rombo fiscal nada mais consiga fazer. Nada se fará, porém, sem política.
Fonte: O Globo
Créditos: O Globo