A ex-senadora Marina Silva, que se diz contra a manobra do Congresso, liderada por Eduardo Cunha (PMDB), pelo impeachment de Dilma Rousseff, defende que a crise política seja resolvida do TSE.
“Impeachment não se fabrica, ele se explicita em função dos fatos que o justificam. Não se muda o presidente da República simplesmente porque a gente discorda dele”, afirma.
Em entrevista à ‘Folha de S. Paulo’, ela diz que “há evidências fortes de que o dinheiro de toda essa corrupção generalizada, institucionalizada, continuada, alimentou a campanha do PT”. “Se isso fica comprovado, eu repito, comprovado, a chapa deve ser cassada. No meu entendimento, o processo no TSE deve ser agilizado”, acrescenta.
Marina rechaça críticas de que seu grupo esteja omisso no debate sobre a grave crise política e diz que é muito cedo para pregar um rótulo no novo partido. Se classifica, no entanto, de “sustentabilista” -progressista, bem entendido, mas não anticapitalista.
Sobre a possibilidade de voltar a ser candidata em 2018, Marina afirma: “Meu objetivo de vida não é ser presidente da República”.
Folha – Se tivesse de descrever a base social e a orientação ideológica da Rede numa palavra, qual seria?
Marina Silva – Costumo dizer que nós somos sustentabilistas.
É uma palavra bem abstrata, não?
Se você diz que é um partido democrático, isso é abstrato?
É abstrato, mas a pessoa ali no terminal rodoviário entende.
Em algum ponto da história da humanidade, quando a democracia era um ideal dos filósofos gregos, se as pessoas tivessem ficado intimidadas com essa coisa só de filósofo, hoje as pessoas da rodoviária não compreenderiam o que é democracia. Alguém tem de começar de algum lugar, de algum ponto.
Mas existe na opinião pública alguma confusão sobre qual é a posição da Rede. Há quem a defina como centrista, portanto à direita do PT. Outros põem ênfase na questão ambiental como uma forma de ser anticapitalista. Por outro lado, há muitos intelectuais e membros da elite num partido que pretende se organizar de baixo para cima. Falta povo na Rede?
Há uma pressa em querer rotular tudo aquilo que está surgindo como algo novo, antes que isso possa se estabilizar. No cenário político nacional, a Rede talvez seja um desses experimentos que de fato buscam fazer uma atualização política.
Na década de 1980, o PT fez essa atualização. Havia ali uma profunda estagnação das estruturas sindicais, do processo político dentro da própria esquerda tradicional, dos partidos marxistas-leninistas com estruturas verticalizadas e centralismo democrático. O PMDB era aquele condomínio que já não conseguia suportar seu próprio peso, e o PT surge naquele momento fazendo uma atualização da política, inclusive com muita gente apressada em rotulá-lo.
Mas havia uma definição muito clara de que era um partido socialista.
Nominalmente se dizia socialista. Mas havia uma disputa na intelectualidade, inclusive com aqueles que diziam que ele estava fazendo o jogo da ditadura, porque estava dividindo as esquerdas.
No meu entendimento o PT é um partido da social-democracia, com base social e popular e, em parte, na intelectualidade. Depois vem essa atualização pelo lado do PSDB, que sai do grande condomínio PMDB e dá a mesma contribuição pelo lado da social-democracia ligada a setores empresariais e outra parte da intelectualidade. Hoje se pode dizer que ambos são partidos social-democratas.
No caso da Rede, acho apressado querer rotular. Sabemos o que é um partido de massas, um partido de quadros, como dizia o velho [teórico italiano Antonio] Gramsci [1891-1937], um partido tradicional, mas um partido em rede, ninguém sabe.
De um ponto de vista programático, a base é sem dúvida a questão do desenvolvimento sustentável, fazendo inclusive uma atualização na luta clássica dos verdes, partido que nasce muito voltado para a luta ambiental, puramente ecológica. A Rede já nasce com esse compromisso de origem: nosso esforço é a busca de um modelo de desenvolvimento que seja sustentável nos seus aspectos econômico, social, ambiental, cultural, político, ético e até mesmo estético.
O termo não foi inventado por mim, é do professor Eduardo Viola. Ele disse num artigo que há os sustentabilistas conservadores e os progressistas. Os conservadores estão preocupados com a economia e com as bases naturais da economia. E os progressistas estão preocupados, sim, em proteger o ambiente, mas também com a questão da sustentabilidade social, com que haja justiça social, equidade, com que se criem mecanismos de igualdade de oportunidades. Naquele texto ele já qualificava Cristovam Buarque e a mim como sustentabilistas progressistas.
Mas não anticapitalistas.
Nós somos a busca de uma síntese. O mundo não pode se resumir ao socialismo e ao capitalismo. Aliás, esse impasse que o mundo hoje está vivendo é porque nós fechamos as possibilidades da realidade, que são múltiplas, em apenas dois paradigmas.
É preciso estar aberto para os paradoxos. Estamos buscando uma nova síntese, que não é uma perspectiva de terra arrasada. Ninguém cria o novo do nada. O novo se cria em cima do que já existe. Uma grande contribuição foi dada pelo capitalismo, avanços que devem ser preservados. O grande questionamento feito pelo socialismo quanto às iniquidades sociais, isso deve ser preservado.
Hoje se pensa em como se devem preservar os espaços para que as pessoas possam ser produtivas, criativas e livres, mas não na mesma lógica de uso insustentável dos recursos naturais e de apropriação das riquezas, em que 1% mais rico detém 50% das riquezas do planeta.
Um partido que se pretende como uma rede de pessoas “autoriais” não depende ainda muito do seu prestígio e da sua popularidade individual?
Olha, se dependesse [só] do meu prestígio e da minha popularidade para conseguir mais de 1 milhão de assinaturas, e não fosse porque de fato operamos como uma rede, talvez não se conseguisse, com a pouca estrutura e os poucos recursos que tínhamos. De fato existe uma propensão das pessoas a atuar.
Quando saí candidata em 2010, eu era apenas a ex-ministra do Meio Ambiente, a senadora da República de uma causa que as pessoas achavam que não dava voto, tirava. Eu me lembro de que, ainda no PT, as pessoas faziam mapas de onde eu podia ir e onde não podia, porque tirava voto.
Só foi possível [obter] os 20 milhões de votos porque existe uma quantidade muito grande de pessoas que estão propensas a não ficar presas apenas na polarização esquerda-direita, PT-PSDB, capitalismo-socialismo.
A polarização e a insatisfação com a polarização são ainda maiores hoje. Como a sra. e a Rede pretendem ocupar esse espaço, das pessoas que recusam os políticos e a política como ela é hoje? A Rede seria a agremiação em melhores condições de aproveitar esse capital eleitoral?
Primeiro, não trabalhar só com a ideia de capitalização. É preciso se organizar, estruturar, formular, para de fato ser uma contribuição viva e efetiva para esse novo sujeito político que está brotando. Ele não vai se associar apenas a uma palavra de ordem. O tempo das palavras de ordem está sendo superado.
As pessoas hoje já estão mobilizadas. O que está faltando é o suporte de algum projeto que seja capaz de fazer essa tessitura entre aquilo que a sociedade está já antecipando -serviços públicos de qualidade, não apenas a oposição pela oposição. A sociedade ela mesma, não apenas aqueles que ficam dentro de suas catedrais com seus dogmas. O primeiro dever de casa que temos de fazer é trabalhar de fato no programa, de estabelecer as prioridades.
Aqui e ali se ouvem críticas à sra. e à Rede por não se pronunciarem de maneira mais incisiva a respeito da situação do governo federal e da crise no país. A que a sra. atribui essa percepção?
As pessoas se acostumaram com a ideia de que se deve fazer ruído, mesmo quando não se tem uma palavra que faça sentido, um intervenção que possa ter eficiência para dialogar com aquela realidade. E ficam entretidas com o próprio ruído, como se isso fosse a resposta.
Tem determinados momentos em que se tem de refletir, buscar caminhos. Não é verdade que estamos em silêncio, muito menos que há omissão. Se fosse uma senadora da República, talvez estivesse dizendo essas coisas o tempo todo na tribuna do Congresso Nacional, como fazia antes. Hoje eu sou uma professora que trabalha e que tem uma militância política, que vive uma vida modesta. Isso tudo tem um custo, de não ter megaestruturas para ficar fazendo política da forma como muitos vinham fazendo e com as consequências políticas, morais e éticas para a República como hoje a gente vê. Nós atuamos com os meios republicanos de que dispomos. E todas as vezes em que somos instados a dar nossa opinião, estamos dando.
Além da Rede, está se formando o Raízes de Luiza Erundina, e no mesmo campo político já há o PSOL e o PSB. Essa nova esquerda já nasce propensa à fragmentação?
O importante é não ser propenso à hegemonia. A diversidade é muito boa. Os processos homogêneos são muito empobrecedores. Hoje se vive o empobrecimento político dos dois campos hegemônicos, que se tornaram quase sinônimo, referência do fazer político.
O Raízes eu não sei onde vai se situar. A Rede se situa no campo da sustentabilidade, que deve preservar os avanços do capitalismo, mas não achamos que chegamos ao fim da história, muito pelo contrário. Precisamos construir uma nova história, em cima do que existe. As escolhas que estamos fazendo, do ponto de vista político, é que não vamos sacralizar partido. Eu já fiquei boa parte da minha vida [nisso] e não vou repetir essa experiência.
A Rede pode dar uma contribuição e espero que ela possa ajudar que o PT, o PSDB também se reinventem. Não existe árvore saudável em ecossistema doente. Nós temos uma aridez profunda no terreno da política.
A sra. poderá ser candidata a presidente, na eventualidade de um processo no Tribunal Superior Eleitoral impugnar a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer?
Do ponto de vista legal, sim.
E do ponto de vista pessoal e político?
Isso eu ainda não sei. No momento estou focada no que é melhor para o Brasil, o processo que está vindo das investigações. Até porque o impeachment conduzido pelo presidente [da Câmara, Eduardo] Cunha [PMDB]… [ri]. Ele deveria estar propondo o seu próprio afastamento.
Do ponto de vista da credibilidade do processo, as investigações trazem a materialidade dos fatos. Impeachment não se fabrica, ele se explicita em função dos fatos que o justificam. Não se muda o presidente da República simplesmente porque a gente discorda dele. E neste momento as contribuições mais relevantes vêm das investigações.
O [senador] Delcídio [do Amaral] não está preso porque alguém fabricou uma articulação política contra o líder do governo. Ele foi preso pelos atos que praticou e pelos delitos que ele próprio confessou. Cunha deve ser afastado não porque alguém fabricou algo, porque ele é um político conservador e que portanto deve sair da presidência da Câmara dos Deputados, é pelos atos que praticou, pelos delitos que foram identificados nas investigações e que estão sendo comprovados.
Há evidências fortes de que o dinheiro de toda essa corrupção generalizada, institucionalizada, continuada, alimentou a campanha da presidente e do vice-presidente. Se isso fica comprovado, eu repito, comprovado, a chapa deve ser cassada. No meu entendimento, o processo no TSE deve ser agilizado.
A próxima eleição municipal vai marcar a estreia eleitoral da Rede. Que objetivos e estratégias o partido vai perseguir?
Dar muita ênfase ao programa, tanto para aqueles lugares em que teremos candidatura própria, que provavelmente não serão muitos, porque acabamos de nos formalizar, com todas as dificuldades que tivemos, no último minuto do segundo tempo. É nossa escolha não fazer da eleição de 2016 um degrau, um trampolim, para 2018, até para preservar o aspecto programático. Isso não nos levará a fabricar candidaturas de qualquer jeito. Em algumas realidades vamos apoiar outras candidaturas [fora da Rede] também com base num programa.
Em que tipo de situação a Rede terá candidatos próprios -nas capitais, por exemplo?
Em algumas capitais é possível que sim. Já temos a Eliziane [Gama] no Maranhão, a possibilidade de ter candidato no Rio de Janeiro. Temos lugares em que vamos apoiar candidaturas de outros partidos, temos conversas com o PPS em São Paulo, que está avaliando lançar Ricardo Young.
O ajuste fiscal é hoje uma questão definidora na política nacional. Se a sra. fosse eleita presidente, estaria disposta a fazer cortes em programas sociais como Bolsa Família, Fies, Pronatec, ou mesmo na saúde?
Mas será que isso é o problema do equilíbrio fiscal? A saúde já está no fundo do fundo do fundo do poço. Há alguém que em sã consciência possa propor cortar mais alguma coisa numa situação como essa? Olha o que está acontecendo no Rio de Janeiro, o que está acontecendo neste país. As pessoas estão morrendo sem assistência.
Eu não gosto de trabalhar por hipótese, não estou me colocando no lugar de candidata, não vou falar como candidata. Vou falar o que eu, Marina Silva, acho importante para o país.
É importante equilibrar as contas públicas, porque quem paga o maior preço é a população. Mas você não pode fazer cortes que sejam lineares. Há uma incompreensão enorme com o que está acontecendo hoje no Brasil. No momento em que havia pleno emprego, o seguro-desemprego era dado a torto e a direito. E quando há uma situação de grande desemprego, cria-se uma série de dificuldades para atrapalhar o acesso ao benefício para os que estão desempregados.
O corte como ele vem sendo feito é fruto de não haver de fato uma estratégia para enfrentar a crise, porque não se quer encarar o mérito as questões, apenas criar paliativos para recuperar a popularidade. As pessoas não estão preocupadas em resolver os problemas. Este era o momento de pensar em como sair da crise melhor e maior, fazendo mudanças estruturais.
Por exemplo, a reforma da Previdência?
As grandes reformas são importantes, como a da Previdência. O Brasil precisa sair do cálculo puramente pragmático, eleitoral, para o compromisso programático, sobre como colocar o país novamente numa perspectiva de crescimento, de dar uma perspectiva para as pessoas. Vale a pena fazer sacrifício, consertar o brinquedo, como diz o [economista Eduardo] Giannetti, para depois voltar a brincar com ele, como foi feito em 2008? A sociedade não está disposta a fazer isso.
Quais são os novos investimentos que o Brasil precisa fazer? É continuar com uma matriz elétrica dependente quase exclusivamente de hidroeletricidade e de carvão e petróleo? Ou investir em energia eólica, de biomassa, diversificar a matriz, trabalhar com a ideia de geração distribuída? O Brasil vai dar consequência aos compromissos que anunciou em Paris? Há um espaço enorme para uma economia florestal, voltada para a inovação, a tecnologia, novos equipamentos na agenda de solar e biomassa.
Se o Brasil tivesse pego os R$ 9 bilhões que deu para o Eike Batista queimar em prejuízo da sociedade brasileira e tivesse criado não sei quantas mil start-ups, com esses meninos criativos por aí, com certeza teria rendido mais do que escolhendo quem serão os campeões para nocautear o dinheiro do BNDES.
Sobre o tema do criacionismo e da influência da religião: na sua atuação a sra. sempre desvinculou convicções religiosas da prática política. Isso não frustra a expectativa de eleitores evangélicos e tira votos da Rede?
Essa história de criacionismo é uma mentira. Eu nunca defendi a tese criacionista porque eu não preciso dela para justificar a minha fé. Eu fui perguntada por um jovem e defendi, numa escola confessional [adventista], que também ali se ensinasse a teoria evolucionista, e isso foi transformado em defesa do criacionismo.
Muitas coisas me são atribuídas por disputa política. A minha prática é o que pode testemunhar a meu favor. Eu fui 16 anos senadora da República, cinco anos ministra do Meio Ambiente, 30 anos de vida pública. Fui católica durante muito tempo, sou hoje cristã evangélica e pago um preço por isso. Porque eu não fui tão questionada quando tinha as mesmas convicções, a mesma prática e a mesma postura quando era católica. Eu defendo o Estado laico. O que eu não defendo é o Estado ateu. Ele não é religioso nem ateu, é laico justamente para defender os interesses de quem crê e de quem não crê.
Eu não digo qualquer coisa de meu adversário. Não digo coisas que a Dilma não fez, que o Aécio não fez, que a Luciana Genro não fez. Essa é uma escolha que, para mim, tem a ver com a ética. Os fins não justificam os meios. Eu não faço o diabo para ganhar uma eleição.
Mas e a possibilidade de que isso venha em desfavor do voto evangélico para a Rede?
Nunca defendi essas teses, de transformar o Estado brasileiro em teocrático, e tive os votos que tive. Vou continuar sendo quem eu sou, dizendo aquilo em que acredito. Não faço um discurso para o público evangélico e outro para o público católico, outro para o público que não professa nenhuma crença. Faço sempre o mesmo discurso.
Repito: não sei se vou ser candidata. Mas acho que não se devem fazer as coisas só pensando no voto. Aliás, a desgraça que estamos vivendo hoje é porque as pessoas não dizem o que precisa ser dito, não fazem o que precisa ser feito, só fazem e dizem o que dá voto. Talvez eu tenha pagado um preço muito alto em 2014 porque tive a coragem de fazer um programa. Meu objetivo de vida não é ser presidente da República.
As questões ambientais tiveram um refluxo no Brasil com o avanço conservador no Congresso, mas voltam a ganhar impulso com a crise hídrica, a Conferência de Paris e com o desastre de Mariana. A sra. acha que, ainda assim, elas têm densidade e penetração suficiente na sociedade para servir de base à definição de um partido?
Em 2010 as pessoas diziam que não tinha [ri]. A sociedade está preocupada com que as questões sejam adequadamente tratadas. A realidade fala muito mais alto do que os discursos que tentam escondê-la.
O que aconteceu em São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, com a ameaça de uma crise hídrica o tempo todo, racionamento de água, a dificuldade de as pessoas terem suas torneiras abastecidas como sempre tiveram, isso fala muito alto. As catástrofes que vêm acontecendo, com deslizamentos de encostas e de morros, enterrando milhares de vidas, falam muito fortemente à população. As pessoas são às vezes subestimadas no seu nível de compreensão e compromisso. Se é base de apelo eleitoral eu não sei, sei que é um profundo apelo ético, econômico, social, é um imperativo ético tratar dessa questão e não se pode desistir dela se ela não der voto. Esse é o desafio deste século.
O que a sra., como ministra, teria feito de diferente numa crise como a de Mariana?
Mais uma vez: não gosto de me colocar num lugar que não estou ocupando. Mariana tem muitos ensinamentos. Existiam laudos técnicos que atestavam que havia o risco. Aquilo estava na responsabilidade do [governo do] Estado, o sistema nacional do meio ambiente é compartilhado, são responsabilidades solidárias com a União.
O mais importante que tiro de tudo isso é que a empresa [Samarco] cometeu um crime ambiental, a empresa sabia que estava colocando em risco a vida daquelas pessoas. Aquilo não foi um desastre, foi um crime praticado diretamente pelas empresas que faziam a exploração do minério e por aquelas que se beneficiavam de seu serviço. Um segundo aspecto é o princípio da precaução. Quando não se tem certeza de algo, não pode pagar para ver. Um outro aspecto é o cumprimento das condicionantes que são estabelecidas quando se dá a licença. A maioria das condicionantes às vezes não é obedecida pelas empresas, não há um sistema eficaz de fiscalização para obrigá-las a cumprir.
Outra coisa: o poder público não pode ficar refém das mineradoras porque elas são as fontes de arrecadação de seus municípios. Num primeiro momento parecia que todo mundo tinha dificuldade de dizer alguma coisa em relação à Samarco. A empresa cometeu um crime. [Houve] o apelo para que se doassem mantimentos, quando na verdade se deveria obrigar a empresa a abastecer com água, com alimento, com moradia.
E existem aspectos legais. Ontem conversei com o [deputado da Rede Alessandro] Molon, nós vamos apresentar um projeto para transformar crimes dessa natureza em crime hediondo, vamos fazer um abaixo-assinado para coletar milhões de assinaturas para dar suporte a esse projeto. Para que a sociedade possa expressar claramente que não concorda com que se faça flexibilização do processo de licenciamento. O Congresso Nacional está propondo licença por decurso de prazo. O processo na Justiça para bloquear os bens dos diretores é fundamental. A pessoa não pode cometer um crime na expectativa de que não haverá consequências.
Que balanço a sra. faz da Conferência de Paris e que perspectiva vê para os compromisso assumidos pelo Brasil?
A ciência ganhou o debate, isso é muito importante. O grupo dos céticos está cada vez mais isolado. Prevaleceu a tese do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, órgão criado pela ONU] de que de fato estamos vivendo o dramático problema do aquecimento do planeta em função do uso de combustível fóssil que acelerou esse aquecimento de uma forma inassimilável pelos ecossistemas e pela própria humanidade.
Os cientistas foram a Paris, saindo de seu exílio. A crítica mais forte, mais contundente, aos resultados de Paris foi feita pela comunidade científica. Eles sabem do que se trata, são os médicos que fizeram o diagnóstico e sabem que os remédios que estão sendo oferecidos não são suficientes. Aliás, em termos de recursos, nem sequer estão sendo oferecidos.
A questão de estabilizar [o máximo de aquecimento da atmosfera] em 1,5ºC e não 2ºC é uma tese altamente elevada, que pressupõe um novo paradigma para o desenvolvimento da humanidade. Mas teses e paradigmas precisam dos meios igualmente elevados para poderem ser implementados.
Nesse caso, não temos como esperar 100 anos, 200 anos, por avanços apenas vegetativos. Se a gente fizer um comparativo do dinheiro que foi mobilizado na crise econômica de 2008 para socorrer a economia com os US$ 100 bilhões para socorrer a ecologia, dá até vergonha. No entanto, estamos ameaçando o futuro de toda a economia, toda a humanidade.
O que foi feito [em Paris] foi uma denúncia dramática da impotência da política para de fato assumir posição em relação a esse problema.
Nesse sentido a sra. diria que o Acordo de Paris foi decepcionante?
Eu diria que ele é relevante do ponto de vista da tese e altamente insuficiente do ponto de vista dos meios para sua implementação.
E com relação às metas brasileiras para o clima?
O Brasil é um país que consegue ter algum protagonismo, às vezes muito relevante, na discussão internacional, até porque é glamoroso se juntar à União Europeia, que lidera esse processo. O Brasil consegue contribuir, graças à competência dos formuladores da diplomacia brasileira, como foi no caso do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
Mas não vamos nos esquecer de que o Brasil assumiu o compromisso em Copenhague de que iria contribuir com o Fundo [Verde] com US$ 1 bilhão e agora voltou atrás. Não vamos nos esquecer que o Brasil ajudou no Protocolo de Nagoia [sobre acesso a recursos genéticos e distribuição de benefícios] e até hoje não o mandou sequer para ratificação. O Brasil mudou o Código Florestal para regularizar 47 milhões de hectares [470.000 km²] de áreas ilegalmente ocupadas pela grilagem e se comprometeu com o desmatamento zero. Até agora, a única coisa que fez foi zerar a diminuição do desmatamento que vinha acontecendo há dez anos.
E dizer que vai acabar com o desmatamento ilegal em 15 anos… Desmatamento ilegal você não pode tolerar em ano algum. Pode até não ter os meios para combater assassinatos de pessoas, mas não pode dizer que num espaço de 15 anos as pessoas podem assassinar. A mesma coisa é desmatar. O Brasil é especialista em fazer um discurso para fora e, para dentro, retroceder. E retroceder muito: é só verificar os retrocessos que estão acontecendo em todas as agendas ambientais, a diminuição da criação de unidades de conservação, de demarcação de terras indígenas, essas iniciativas todas para flexibilizar o licenciamento, esse famigerado Código da Mineração, com mais flexibilizações.
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