NO ÚLTIMO 8 DE AGOSTO, o operário Luís Fernando Pereira, de 38 anos, morreu ao inalar gás durante um serviço de rotina numa tubulação da siderúrgica Usiminas, em Ipatinga, no interior de Minas Gerais. Dois dias depois, um dos quatro gasômetros da empresa explodiu.
A destruição do reservatório de gás fez a terra tremer em 1.86 na Escala Richter, hospitalizou 34 funcionários, quebrou as vidraças da Câmara Municipal e deixou uma população de mais de 250 mil habitantes em pânico – a fábrica da Usiminas, maior produtora de aços laminados planos da América Latina, fica no centro do município.
Ano passado, 42 operários se acidentaram na usina, segundo os comunicados de acidente de trabalho, os CATs, que a empresa precisa enviar obrigatoriamente ao sindicato e ao Ministério Público do Trabalho. É um número subestimado. O dado não considera, por exemplo, as 34 vítimas hospitalizadas após a explosão do gasômetro. Encontramos até uma morte na usina que nunca recebeu seu CAT e, portanto, uma investigação adequada.
“[No caso da explosão] a Usiminas alega que não houve lesão aos trabalhadores. Dá para acreditar nisso?”, diz Bruno de Almeida Pedersoli, médico do trabalho que assiste o sindicato. “Acidente com metalúrgico sempre acontece e quase nunca é noticiado. A empresa esconde mesmo. A novidade após a explosão do gasômetro é que o mundo passou a ter noção do perigo de se trabalhar lá dentro. A sensação de medo não é mais exclusividade dos trabalhadores”, completa Geraldo Magela, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da cidade.
Reginaldo José da Silva, que trabalhava em uma empresa terceirizada que atende a usina, recebeu uma descarga elétrica de 3 mil kW numa subestação de energia da siderúrgica. Ele foi hospitalizado e morreu quatro meses depois. A suspeita é de que o acidente ocorreu por manutenção inadequada. O Ministério Público do Trabalho tomou conhecimento da morte, ocorrida em 2016, apenas no início de 2018. E por acaso. “Eu atuava em uma reclamação trabalhista em que a viúva e os filhos do trabalhador morto processavam a siderúrgica. Foi aí que soube do caso”, conta o procurador Adolfo Jacob.
Outro episódio descoberto de forma não oficial pelos procuradores foi um vazamento, também em 2016. Cinco funcionários de uma empresa terceirizada ficaram intoxicados e foram hospitalizados depois de inalarem gás tóxico que vazou para o sistema que deveria filtrar o ar no topo de um dos fornos da usina. Assim como na explosão do reservatório de gás em agosto, os comunicados de acidente do trabalho não foram encaminhados ao sindicato.
Jacob, no entanto, não soube precisar com exatidão o número de ocorrências registradas nos últimos anos. “A imprensa não publica nada, e a Usiminas só se manifesta depois que o inquérito é formalmente instaurado. Por força de lei, a usina deveria informar todo e qualquer acidente. Não é o que acontece”, diz.
Diante da omissão, uma das ferramentas utilizadas pelo procurador para descobrir ocorrências tem sido a internet. “Muitas situações são denunciadas pelos trabalhadores por meio das redes sociais. Isso passou a nos ajudar para que tenhamos noção da realidade lá de dentro.”
O Intercept teve acesso a inúmeros vídeos feitos por funcionários da Usiminas e a boletins informativos publicados pelo sindicato que assiste à categoria. A maior parte desse material revela as condições precárias de trabalho impostas aos operários. Acúmulo de função, assédio moral de supervisores, galpões fechados sem o devido sistema de ar-condicionado, maquinário velho, vazamento de gases, entre outras situações até então ignoradas pela maior parte da sociedade que vive do lado de fora da usina.
“Gostaria que a empresa se tornasse mais humana. Que não se preocupasse com o trabalhador somente após a sua morte”, disse uma viúva de um operário, que pediu anonimato.
Questionamos a Usiminas sobre o plano de evacuação e o prazo para que seja colocado em prática, as denúncias dos funcionários referentes à más condições de trabalho, o número de acidentes e as declarações tanto do sindicato quanto do MPT de que a empresa costuma esconder essas ocorrências – entre elas, a morte de Reginaldo. A empresa se limitou a responder que toda a sua atuação “segue rigorosamente a legislação brasileira em vigor, as normas específicas aplicáveis à siderurgia e os compromissos firmados com os órgãos competentes”.
Plano de evacuação
A direção da Usiminas admitiu, 18 dias após a explosão do tanque em agosto, a possibilidade de apresentar um plano emergencial de evacuação para toda a cidade, iniciativa até então inédita no município. Entretanto, passados mais de seis meses do anúncio, nada foi compartilhado até o momento.
No dia 15 de dezembro, mais um acidente. Uma das máquinas que transportam materiais dentro da usina pegou fogo por volta das 14h30. O equipamento incendiado ficava a menos de 300 metros da prefeitura, da câmara municipal e de um dos maiores supermercados da cidade. Não precisou de muito tempo para que a combustão da borracha existente na máquina formasse uma espessa nuvem preta visível a quilômetros de distância.
“Quando vimos aquele volume de fumaça subindo o céu já ficamos desesperados. Estava pegando fogo dentro da Usiminas, outra vez. Devemos nos acostumar com isso?”, lembra o empresário Diego Andrade. “A sensação é que a qualquer hora algo muito ruim vai acontecer. E isso aumenta diante de acidentes que parecem ocorrer cada vez com maior frequência. Eu sinto medo de viver aqui”, diz o locutor Bruno Gonçalves, funcionário de uma loja de roupas próxima ao parque industrial da siderúrgica, no centro de Ipatinga.
Em Ipatinga, a Usiminas tem 13 mil funcionários – 7 mil contratados e cerca de 6 mil terceirizados – e é a maior empregadora da cidade. Para se ter uma ideia da influência da empresa na região, até o prefeito de Ipatinga, o emedebista Nardyello Rocha, é ex-funcionário da siderúrgica. A assessoria da empresa não respondeu ao Intercept sobre o número de acidentes ocorridos em 2018.
O tanque destruído na explosão de agosto continha uma mistura de gases LDG, abreviatura de Linz Donawitz Gás, utilizada na produção do aço. Trata-se de um material composto por monóxido de carbono, dióxido de carbono, nitrogênio, hidrogênio e oxigênio. É inodoro e incolor e também inflamável e altamente tóxico. A sorte, diz Magela, é que o gasômetro estava praticamente vazio. “Caso contrário, Ipatinga inteira teria ido pelos ares.”
Três dias depois da explosão, o eletricista Ricardo Alves, de 36 anos, teve um dos braços amputados no hospital após prender parte de seu corpo em uma máquina ainda ligada. Questionada pela imprensa regional à época, a Usiminas não explicou a causa da morte do operário Luís Fernando e tampouco o episódio que envolveu o eletricista. A justificativa para a explosão do gasômetro veio apenas quatro meses depois, no final de novembro. O relatório apresentado pela siderúrgica aponta que o acidente se deu por falha técnica no maquinário. Desde então, ninguém foi responsabilizado criminalmente pelo acidente, e os Ministérios Públicos de Minas Gerais e do Trabalho informaram que continuam a investigar os três casos.
Sem Fiscalização
Além dos acidentes, a população de Ipatinga também reclama da poluição do ar e da água. Em 2010, a empresa foi obrigada por um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público mineiro a instalar quatro painéis eletrônicos em diferentes pontos do município depois que uma investigação mostrou indícios de contaminação do ar da cidade. O objetivo era tornar público à população informações sobre o monitoramento da qualidade do ar local em tempo real.
A assessoria de comunicação da Usiminas negou o acesso aos dados do monitoramento e afirmou, sem apresentar nenhum dado, que não há risco de contaminação por gases tóxicos na cidade. O Intercept pediu informações relacionadas à qualidade do ar da cidade à prefeitura, à câmara municipal e ao MP mineiro. Nenhum dos três apresentou quaisquer dados que comprovem o devido monitoramento do ar. O prefeito Rocha sequer retornou as solicitações encaminhadas por email à sua assessoria de comunicação reiteradas vezes.
Em vistoria feita pela secretaria após a explosão do gasômetro, o órgão afirmou que não houve alteração na qualidade do ar no município. “Os dados meteorológicos indicaram que no momento e após o acidente as condições de dispersão dos gases na atmosfera estavam favoráveis”, informou o representante do governo ao site G1 no dia 12 de agosto.
Entretanto, o Intercept teve acesso a um documento apresentado pela Usiminas ao Ministério Público em que justifica a indisponibilidade de dados referente ao monitoramento de poluentes no período de 1 de junho a 16 de agosto do ano passado.
No próprio site da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais, o último boletim sobre a qualidade do ar de Ipatinga publicado é de 2015. O relatório não especifica o mês em que o levantamento teria sido feito e tampouco o resultado da análise.
Não que os moradores da cidade confiem na versão da empresa. “Eu nunca vi um painel apontar qualidade ‘ruim’. É sempre ‘boa’”, diz Marcelo Antunes Dias, que reside no bairro Cariru, um dos pontos que deveriam ser monitorados conforme os termos acordo.
A dúvida é reforçada pela fumaça densa que sai das chaminés da indústria todos os dias. “Pela manhã, a poeira preta predomina no chão das casas. A Usiminas polui e quem vive aqui sabe disso”, diz Andrade, que costuma filmar a fumaça e a sujeira que ela causa e postar em suas redes sociais.
Água contaminada
Também em 2010, a Usiminas foi obrigada a fazer outro Termo de Ajuste de Conduta com o MP, dessa vez devido a presença de substâncias tóxicas no lençol freático de bairros próximos à usina. A empresa deveria, segundo o acordo, realizar ações de despoluição da água – o que não ocorreu.
O bairro Vila Ipanema teve parte de seu lençol freático comprometido pela siderúrgica. Poluída por benzeno e naftaleno, substâncias fortemente cancerígenas, a água utilizada para alimentar poços artesianos da comunidade está proibida de ser consumida há dez anos. “A Usiminas veio aqui e disse de um dia para o outro que teríamos de lacrar nosso poço. Para compensar o prejuízo, ela paga nossas contas de água”, contou a aposentada Maria Barbosa.
Todos os poços da região foram fechados. “Foi um cala boca que a Usiminas deu para abafar a situação e que a maioria das pessoas aceitou sem questionar. Não existe diálogo por parte da empresa e a cidade segue sendo prejudicada. Precisamos de ajuda”, diz o sindicalista Arildo Ferreira, funcionário da Usiminas há 31 anos.
Fonte: The Intercept
Créditos: Bruno Soares e Nilmar Lage