Seis especialistas responderam sobre o papel do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Ministério Público, Forças Armadas e movimentos sociais.
Nas semanas que antecediam o segundo turno, juristas se dividiram em manifestos sobre o risco à democracia caso Jair Bolsonaro (PSL) fosse eleito presidente da República. Com a vitória do capitão reformado, que já defendeu fechar o Congresso Nacional e exalta torturadores da ditadura militar, qual será o papel das instituições no Brasil para conter eventuais excessos do Executivo?
O HuffPost Brasil ouviu 6 especialistas sobre as funções do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, Ministério Público e movimentos sociais. De modo geral, eles acreditam que possíveis abusos serão contidos, embora façam alertas. “Bolsonaro é a maior ameaça à democracia brasileira nos últimos 30 anos”, adverte Carlos Ranulfo Melo, cientista político da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
A referência de Melo é a data de promulgação da Constituição Federal de 1988, apelidada de “Constituição Cidadã”. Além de garantir direitos fundamentais, a Carta estabelece em seu artigo 1º que o Brasil é um “Estado democrático de direito”. Isso significa que os três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — devem atuar de forma harmônica, em um sistema de pesos e contrapesos, a fim de evitar arbitrariedades.
Congresso Nacional no governo Bolsonaro
Para concretizar algumas de suas propostas, Bolsonaro vai precisar de apoio no Congresso Nacional. Apesar da renovação de mais de 50% na Câmara dos Deputados, com ascensão de representantes da extrema-direita, alinhados ideologicamente com o novo presidente, especialistas destacam possíveis barreiras para governabilidade.
Ranulfo Melo destaca a necessidade de mudança no perfil avesso a negociações ao longo dos 27 anos em que atuou como deputado federal. “O Bolsonaro vai ter que aprender lidar com o Congresso, coisa que ele não sabe fazer. Foi parlamentar durante anos isolado, nunca teve trânsito entre seus colegas”, lembra. ” A relação do Executivo com o Legislativo é horizontal, de poder para poder, não de chefe para subordinado. Se ele não entender isso, vai rapidamente entrar em conflito com o Congresso. E aí vamos ver até onde vão as tendências autoritárias”, afirma.
A aversão a coalizões é outro entrave que precisará ser superado. “Embora possa haver um alinhamento ideológico entre Congresso e Bolsonaro, o Congresso não vive de ideologia. Nunca viveu. Vive de ocupar posições, se beneficiar de postos nos governos para satisfazer suas bases eleitorais. Essa é a moeda de troca do Congresso, e nada indica que este vai ser diferente”, afirma Melo.
Dentro desse cenário, se destaca o centrão, conhecido pelas barganhas de cargos e composto por partidos como PP (do qual Bolsonaro já fez parte), PR, PSD, PRB e PTB, além do MDB. Juntos, eles somam 178 integrantes, número fundamental na aprovação de emendas constitucionais, por exemplo, que exigem um quórum mais alto.
Outro grupo que irá influenciar nas forças do Parlamento é a oposição. “O Legislativo tem uma diversidade muito grande; apesar de todos os problemas da fragmentação, é um sistema que consegue ter o peso das minorias também”, disse Denilde Holzhacker, coordenadora do Centro de Assuntos Internacionais e Análise de Risco da ESPM-SP, em entrevista ao HuffPost Brasil logo após o primeiro turno.
“Os partidos de esquerda estão representados no novo Congresso, de centro e de direita também. Isso dá certa tranquilidade para saber que a gente tem mecanismos para barrar posições autoritárias”, completa Holzhacker. As bancadas do PT, PSB, PDT, PCdoB e PSol, siglas em geral progressistas, somam 135 deputados.
Um dos 83 signatários do manifesto Ele Sim, a favor de Bolsonaro, o jurista Ives Gandra Martins também ressalta a importância da atuação dos parlamentares para eventuais mudanças legais. “Os candidatos normalmente apresentam propostas, mas a execução vai depender de um amplo debate nacional em que todas as respostas modificativas propostas têm de ser discutidas com a sociedade através da sua Casa de representação, que é o Congresso Nacional”, afirma.
Não tenho receio de que nossa democracia vá ser mantida e vai ser de forma muito maior com o controle dos eleitos pela sociedade.Ives Gandra Martins
Forças Armadas e Bolsonaro
Na avaliação de especialistas alinhados a Bolsonaro, as próprias Forças Armadas são uma força de contenção ao presidente. De acordo com a legislação brasileira, Marinha, Exército e Aeronáutica respondem ao chefe do Executivo.
“Com a nossa Constituição e os três poderes funcionando — embora muitas vezes haja excesso de um lado ou de outro, eles procuram equilíbrio e independência — e com as Forças Armadas, que não são uma organização do Estado, faremos sempre cumprir a Constituição. Essa é a mentalidade de todos os militares na ativa”, argumenta Ives Gandra Martins, que é advogado e professor emérito da Universidade Mackenzie e das escolas de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.
Também signatário do manifesto Ele Sim e professor da Universidade Mackenzie, Hélcio Dallari reforça essa visão. “O tempo modificou os militares. Eles passaram a ter formação democrática. Passaram a ter que estudar Constituição e as leis. Não dá para identificar postura de pessoas do passado com pessoas que estão no presente”, afirma.
Por outro lado, Ranulfo Melo vê com apreensão a postura dos militares. “O que mais me preocupa é o silêncio das Forças Armadas quando Bolsonaro diz que é o candidato das Forças Armadas. Elas não podem ter um candidato porque não podem influir no processo político”, alerta.
Apesar de deputado federal por 7 mandatos, a passagem pelo Exército de 1977 a 1988 é um dos fatores que impulsionou a popularidade de Bolsonaro. Comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, negou em entrevista ao jornal Estadão em setembro que o capitão reformado seja o candidato das Forças Armadas, mas afirmou que ele tem “apelo no público militar, porque ele procura se identificar com as questões que são caras às Forças, além de ter senso de oportunidade aguçada”.
Além do apoio de parte dos militares, o vice de Bolsonaro, Antônio Hamilton Martins Mourão é general da reserva do Exército. Em setembro, ele admitiu a hipótese de um “autogolpe” em caso de uma “anarquia generalizada”. “O próprio presidente é o comandante-chefe das Forças Armadas, ele pode decidir isso. Ele pode decidir empregar as Forças Armadas (…) É um autogolpe, você pode dizer isso.” A fala foi desautorizada por Bolsonaro depois.
Supremo Tribunal Federal e Bolsonaro
Dentro dos três poderes, a atuação do STF, instituição máxima do Judiciário, também pode ser fundamental na preservação de direitos. “Até agora o STF tem se mostrado em grande parte dos casos como importante defensor dos direitos fundamentais”, afirma Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
No campo das liberdades de expressão e de reunião, o jurista cita como exemplo decisões da Corte sobre biografias não autorizadas, Lei de Imprensa e marcha da maconha. Ele lembra ainda julgamentos favoráveis a cotas raciais nas universidades públicas e à união homoafetiva. “Não tem motivo constitucional para não continuar nesse caminho e, portanto, o STF vai ter um papel mais relevante nos próximos anos”, completa Dias.
Se cumprir o mandato até o fim, o novo presidente irá mudar a composição da Corte. Caberá a ele indicar dois novos integrantes até 2021 devido à saída prevista de Celso de Mello e Marco Aurélio Mello até lá. As indicações precisam do aval do Congresso.
É função do Supremo analisar normas que eventualmente violem princípios constitucionais. Para o especialista, a Corte terá destaque devido a posições de Bolsonaro que sinalizam violações de direitos das minorias e separação e controle do poder, por exemplo.
Estamos diante de uma série de fatores novos e muito mais agressivos à democracia, que a gente nunca viu nos últimos 30 anos.Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da FFV
Na avaliação do jurista, apesar da “tensão” em 3 momentos na História recente nacional, a “Constituição se mostrou forte o suficiente para absorver impactos e manter estabilidade”. Ele cita o impeachment de Fernando Collor de Mello, o de Dilma Rousseff e “o início da responsabilização penal de grandes autoridades no Brasil”, desde que estourou o escândalo do mensalão, em 2005.
Ministério Público no governo Bolsonaro
Outra instituição que poderá ter papel decisivo no governo de Bolsonaro é o Ministério Público (MP), aponta o ex-procurador-geral da República Claudio Fontelles. “O artigo 127 da Constituição diz que o Ministério Público é uma instituição da sociedade brasileira para defesa do regime democrático e garantia dos direitos individuais e coletivos. É a única instituição que está lá escrito que existe para defender a democracia”, destaca.
Signatário de manifesto a favor de Fernando Haddad, candidato do PT derrotado à Presidência da República, o jurista acredita na força do MP independentemente de eventuais intervenções do Executivo. “Ainda que uma pessoa venha a ser indicada fora de todos os padrões, para atender a caprichos pessoais, essa pessoa vai ter de enfrentar a vivência interna, institucional do próprio MP. Ninguém pode impedir o MP de agir. Não somos órgão do poder Executivo. Isso é uma grande conquista da Constituição chamada Cidadã e Democrática”, afirma.
Antes submetido ao Executivo, o Ministério Público passou a ter autonomia em 1988. O novo presidente irá indicar o próximo procurador-geral da República, e Bolsonaro já afirmou que não irá seguir a lista tríplice.
Estabelecida antes de Fontelles ser indicado para o cargo no governo Lula e seguida pelos presidentes desde então, a medida consiste na indicação de 3 nomes pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). O presidente escolhe o novo chefe do MP entre os indicados, o que limita a influência do Executivo. A mudança foi proposta após a recondução de Geraldo Brindeiro por 3 vezes, apelidado de “engavetador geral da República” no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Ativismo e sociedade civil
Apesar de Bolsonaro ter dito que iria “proibir todo ativismo” no Brasil, sem esclarecer o que isso significa, especialistas alertam que, na prática, a lei impede o presidente de proibir a livre manifestação de pensamento.
Na avaliação de Ranulfo Melo, é possível que o presidente cogite acionar o Exército para atuar em protestos, por exemplo. “Não há outra maneira de proibir o ativismo. Essa é mais uma das intervenções autoritárias dele. O Bolsonaro não sabe se mover numa democracia. Quem proíbe ativismo é ditador e não tem como proibir por decreto. O que ele pode fazer é reprimir”, afirma o cientista político.
Para o especialista, a parcela mais organizada da sociedade civil, como sindicatos, ONGs e organizações ambientais, se manterá atuante. “O ativismo social não pode parar porque um candidato falou que não gosta. A democracia garante liberdade de expressão, manifestação e organização”, completa.
Melo vê com preocupação declarações de Bolsonaro. “O discurso de domingo [passado] é o mais fascista que já vi na vida. Está incentivando sua base a partir pra violência”, afirmou em referência à fala do então candidato transmitida em ato de seus apoiadores na Avenida Paulista, em São Paulo (SP), em 21 de outubro.
Em vídeo, Bolsonaro afirmou que se eleito Fernando Haddad irá para cadeia. “Vocês, petralhada, verão uma Polícia Civil e Militar, com retaguarda jurídica, para fazer valer a lei no lombo de vocês”, afirmou, acrescentando que as “Forças Armadas serão altivas”.
O capitão reformado também defendeu “fuzilar a petralhada” em ato de campanha em setembro, no Acre.
Para Roberto Dias, o discurso de eliminação de adversários é preocupante e um incentivo a agressões nas ruas. “É gravíssimo do ponto de vista democrático porque, em última análise, isso leva ao que o candidato tem pregado, que é a extinção da oposição e a opressão das minorias e da sociedade civil”, ressalta.
Além da atuação de grupos organizados, especialistas destacam a importância da sociedade civil como um todo, mesmo que pesquisas de opinião indiquem fragilidades na defesa da democracia.
De acordo com pesquisa Datafolha divulgada em 19 de outubro, 51% avaliam que a ditadura deixou mais realizações negativas do que positivas ao País, contra 32% que pensam o contrário.
Quanto a violações no regime de exceção, 32% concordam que “o governo deve ter o direito de prender suspeitos de crimes sem autorização da Justiça”, 21% apoiam que o Executivo possa fechar o Congresso e 16% dizem que o governo deve ter “o direito de torturar suspeitos para tentar obter confissões e informações”.
Coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de 2012 a 2013, Claudio Fonteles faz um mea culpa sobre a percepção dos brasileiros. “A Comissão Nacional da Verdade não conseguiu sensibilizar a sociedade brasileira na demonstração dos enormes malefícios que significa o estado ditatorial militar”, afirma sobre a atuação da instituição criada para investigar crimes da ditadura.
Somado a esse fato, o ex-procurador geral atribui a ascensão de Bolsonaro e de ideias da extrema direita à crise dos últimos anos no Brasil. “Num momento de profunda decepção, a conduta normalmente dos seres humanos é de pouco equilíbrio e aí qualquer canto de sereia seduz facilmente. As pessoas ficam de ouvidos moucos, de olhos cegos e de boca fechada porque perdem a capacidade da serenidade. A dor profunda nos conduz a isso.”
Fonte: Huffpost Brasil
Créditos: Huffpost Brasil