Renato Sérgio de Lima
Por Alberto Kopittke*
Os primeiros comentários na grande mídia sobre o PL da excludente de ilicitude apresentado por Bolsonaro ontem (21) não compreenderam de fato do que trata o Projeto. Mesmo os comentários críticos abordaram o PL como se ele fosse uma repetição do PL do Pacote de Sergio Moro, apenas ampliado a excludente para Militares em Operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).
No entanto, o Projeto praticamente não tem relação com “Segurança Pública” e com o debate sobre a letalidade policial, que polariza o país e revela o forte protagonismo das polícias militares na vida política. Apesar das Operações de GLO serem utilizadas de forma cada vez mais ampla pelos Governos do PT e agora do PSL, nos últimos 10 anos, o número de mortes provocadas em Operações GLO é muito pequeno se comparado com os números do cotidiano da segurança pública brasileira, por geralmente se tratarem de operações de estabilização de território.
O que não foi percebido, é que o PL de Bolsonaro é praticamente uma cópia do Decreto Supremo 4078 editado há 5 dias atrás pela autoproclamada Presidente da Bolívia, Jeanine Ãnez, que garantiu a excludente de ilícitude para as Forças Armadas bolivianas reprimirem os movimentos que eclodiram no país. Outro sinal que passou quase que desapercebido foi que o Ministério da Defesa e não o da Justiça e Segurança Pública é que foi acionado para construir a minuta da proposta.
Na verdade, o PL de Jair Bolsonaro não tem nenhuma preocupação com o problema da criminalidade do país. Ele tem como alvo a possibilidade de um aumento das mobilizações de rua no país, como está ocorrendo em todo o continente, autorizando policiais e as forças armadas a fazerem uso da força letal contra pessoas envolvidas em manifestações sociais. O Projeto é uma preparação para a possibilidade do Brasil viver um processo de mobilização social e segue a sugestão dada pelo filho 03 do Presidente, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias atrás, sobre a necessidade de se tomar medidas duras, como um novo AI5 no país.
É preciso compreender que o Projeto de Lei apresentado por Bolsonaro não está isolado na história. Ele é o ápice de toda uma estrutura jurídica que vem tornando a GLO um verdadeiro regime de exceção nas mãos do Presidente da República, sem a necessidade de aprovação do Congresso Nacional. Há uma aposta na radicalização como tática diversionista de concentração de poderes pelo Presidente e esvaziamento de quaisquer agendas que não sejam por ele emuladas.
Em 2013, findadas as manifestações populares, o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas publicou a regulamentação das Operações de GLO (Portaria Normativa nº 3.461/2013/MD). A Portaria alterou pela primeira vez desde a redemocratização o conceito de Força Oponente, que é o conceito central que autoriza o uso da força por parte das Forças Armadas, o qual desde a redemocratização era entendido como as Forças Armadas de outro país soberano que venha a atacar o território nacional. A partir dessa Portaria, a utilização do uso de força militar passou a ser autorizada contra “qualquer grupo interno que instabilize a ordem social”. Além disso, a Portaria ainda previu pérolas como a possibilidade de realizar operações psicológicas junto a população civil brasileira e a autorização para a restrição do livre exercício do jornalismo nas áreas sob intervenção.
Em razão de forte reação de movimentos sociais, a regulamentação foi suavizada (Portaria Normativa Nº 186/MD/2014), embora tenha mantido como força oponente a ideia abrangente e vaga de “agentes de perturbação da lei e da ordem”. Agora, o novo Projeto de Lei retoma o espírito da Portaria original e incluí terrorismo no rol de situações autorizativas para a excludente de ilicitude. Há uma sutil mas clara reorientação político institucional em curso e que poucos estão percebendo. A questão é que não bastam votos em uma democracia; é preciso que as instituições sejam democráticas e sujeitas a mecanismos transparentes de controle e supervisão.
Em seu brilhante livro “Political (in)justice: authoritarianism and the rule of law in Brazil, Chile, and Argentina” sobre os regimes autoritários na América do Sul, o Professor Anthony Pereira, do Kings College de Londres, destaca uma peculiaridade do autoritarismo militar nacional. Diferentemente dos demais países, a ditadura brasileira, embora constitucionalmente ilegal, sempre se preocupou em garantir a legalidade formal mesmo de seus atos mais autoritários, a começar pelos diversos Atos Institucionais, cuidadosamente escritos até milhares de Inquéritos Militares, que registravam todas as perseguições totalmente arbitrárias.
Embora pudesse ter feito tudo o que fez apenas fazendo uso da força, como fizeram as Ditaduras Argentinas, Chilenas e Uruguaias, a Ditadura Brasileira preocupou-se em ser formalmente adequada, seguindo o “melhor” da tradição jurídica brasileira que prima pela forma em detrimento dos princípios do Estado Democrático de Direito.
O Projeto de excludente de Ilicitude em Operações GLO faz parte dessa tradição do legalismo autoritário brasileiro que vem ressurgindo e ganhando mais forças a cada dia no país. Num momento em que o futuro sobre nossa democracia é incerto, a única certeza é que o primeiro Projeto de Lei do novo AI5 já foi apresentado.
* Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Folha de São Paulo