O Brasil que foi às urnas no último dia 7 deixou um sinal inequívoco: uma quantidade expressiva de brasileiros votou pelo conservadorismo representado por Jair Bolsonaro (PSL), que lidera com folga as pesquisas de opinião na disputa de segundo turno pela Presidência.
Amparado pela votação no outrora nanico PSL, partido que terá a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados, o desempenho do capitão reformado do Exército no primeiro turno suscitou inquietações e debates sobre a nova direita em configuração no país.
Com o apoio do mercado, de empresários e de partidos do centro, a nova força política chegou causando o que muitos analistas classificaram de “avalanche”.
Bolsonaro conseguiu se apresentar como um outsider – embora seja deputado federal há 27 anos – e ainda catalisou um anseio de direita por muitos anos desprezado pelo sistema político e por quem se dedica a pensá-lo, além de ter sido o maior beneficiário do voto antipetista.
Para o historiador José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras, o Brasil é, sim, um país conservador, mas não “reacionário ou autoritário” – ele lembra as eleições de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, FHC e Lula, os dois últimos reeleitos.
“O conservadorismo autoritário representado por Bolsonaro é um sintoma de mal-estar social que desafia o sistema representativo como praticado no Ocidente”, opina.
“É um fenômeno complexo: o fato mais amplo do crescimento dele é a insatisfação geral causada pela demora em sairmos da crise econômica e pela desmoralização dos grandes partidos e de seus líderes, envolvidos nas denúncias de corrupção.”
O cientista político Marco Antônio Teixeira, professor da Fundação Getúlio Vargas, acredita que dois aspectos se consolidaram no resultado do primeiro turno: o conservadorismo e o bolsonarismo.
“Houve, na verdade, uma identificação do conservadorismo, que é muito mais antigo, com Bolsonaro. Ele se tornou um líder”, diz.
O papel do candidato como puxador de votos – ele passou a ser cortejado até por juízes federais – beneficiou uma infinidade de eleitos para o Congresso e Assembleias Legislativas, além de insuflar a candidatura de desconhecidos em Estados como Rio de Janeiro e Minas Gerais, grandes colégios eleitorais do país.
Espaço à direita
Por muito tempo se discutiu no Brasil a ausência de um grande partido de direita que se assumisse como tal. No pós-ditadura, talvez o antigo PFL, rebatizado de DEM em 2007, tenha sido o único, mas ainda assim sem tanto sucesso nas urnas.
Nos últimos anos, como lembra Marco Antônio Teixeira, essas forças políticas de direita estavam dispersas em pequenos partidos ou reunidas em frentes parlamentares do Congresso como a do agronegócio e a da Bíblia.
“Talvez o PSL venha a ser esse grande partido de direita. A direita não tinha um partido, mas agora encontrou um porta-voz”, ressalta.
O partido de Bolsonaro cresceu de forma espetacular nestas eleições. A legenda terá a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados (com 52 assentos, atrás apenas do PT).
Nas contas feitas pelo cientista político Jairo Nicolau no site Observatório das Eleições, a votação do PSL, um nanico até recentemente, é a maior já obtida por um novo partido na história das eleições desde que a Constituição foi promulgada em 1988.
O professor da FGV Marco Antônio Teixeira complementa:
“A sociedade brasileira está se tornando conservadora, precisamos entender por que isso está acontecendo. Há muitos fatores e há uma mudança de tradições. Há uma relação com o tema da segurança pública e também com os evangélicos. O medo da violência deixa as pessoas mais sensíveis ao discurso que propõe soluções rápidas e que desprezam as instituições, que não são mais confiáveis. O segmento religioso por natureza é conservador.”
Com a atual reconfiguração política, temas surgidos durante a campanha – redução da maioridade penal, valores morais e ideais de degradação da família, entre outros – devem entrar na agenda do futuro governo.
Doutor em História Social e professor da USP, o historiador Paulo Teixeira Iumatti pondera, contudo, que ainda é cedo para dizer que a base conservadora está consolidada, já que a sociedade brasileira é “muito instável”, em constante movimento e com diversidades regionais imensas.
“O conservadorismo tem várias fases, entre elas o crescimento dos evangélicos. Outra face tem sido sua conjugação, até certo ponto paradoxal, com um discurso voltado para uma transformação radical da sociedade, liberal em termos econômicos mas reacionária em termos sociais e culturais”, comentou.
Movimento ‘subestimado’
O ensaísta Bruno Carvalho, professor de Harvard, escreveu meses atrás na revista Piauí uma análise do discurso bolsonarista. Para ele, muitos eleitores encontraram no antipetismo pregado pelo político um “salvo-conduto” para posições incompatíveis com a democracia – mas explicação a vai além desse argumento.
“Bolsonaro parece capaz de gerar uma identificação mais pessoal do que ideológica com muitos eleitores. Nesse sentido ele se assemelha ao Lula”, diz.
Segundo Carvalho, o movimento brasileiro guarda algumas semelhanças com o que aconteceu dois anos atrás nos Estados Unidos, quando Donald Trump foi eleito.
“Vivemos uma crise epistemológica que ainda não temos como entender bem. Continuamos a pagar a conta por erros históricos como processos abolicionistas incompletos e racismo entranhado nas instituições. O fato de o eleitorado mais de direita optar por um radical, ao invés de outros candidatos da direita mais comprometidos com a democracia, indica uma necessidade urgente de autocrítica entre elites conservadoras e liberais”.
Para o historiador Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o sistema político tradicional não subestimou somente Bolsonaro, mas também as suas bases sociais. Ele estende sua crítica nesse caso à academia e aos intelectuais. Houve, segundo Aarão Reis, um “silenciamento” da ditadura militar (1964-85) a partir do “equívoco” de que o regime foi imposto “de cima para baixo”, pela repressão, sem contar com um base social concreta.
“Para conhecer uma sociedade conservadora como a brasileira, é fundamental estudar as bases sociais do conservadorismo e do reacionarismo. Essas bases são transversais, mobilizando importantes segmentos das elites, das classes médias e das próprias classes populares. As forças progressistas e a grande maioria dos intelectuais nunca se interessaram por estudar esse fenômeno a fundo”, afirma.
Segundo ele, alegou-se no Brasil, por muito tempo, que as “direitas” haviam desaparecido do mapa político, mas ele lembra que “tucanos e petistas só governaram com alianças à direita”.
Fonte: BBC
Créditos: BBC