Difícil falar-se sobre quem ganha em um cenário de uma das maiores crises que já se abateu sobre a humanidade nas últimas décadas, com perdas e impactos significativos e nefastos nos mais diversos e relevantes segmentos, como aqueles de ordem médica, sanitária, econômica, social, cultural, política, ética e epidemiológica, a partir do surgimento da atual pandemia pelo novo coronavírus, no final de 2019, na China.
A ciência e os sistemas de saúde, sejam eles públicos ou privados, foram desafiados em todos os seus níveis, e em todos os países. Não bastassem os problemas crônicos de saúde já existentes, a pandemia ocasionada pelo SARS-CoV-2 trouxe o maior deles para sociedade hodierna, mormente para os países subdesenvolvidos e para populações e grupos mais vulneráveis, bem como para as periferias dos grandes centros urbanos. A doença, sabidamente democrática, trouxe em seu esteio consequências distintas, para realidades desiguais.
Hoje somam-se já mais de 230 milhões de casos de COVID-19 em todo o mundo, com cerca de 4,7 milhões de óbitos decorrentes da doença. Só no Brasil, já são mais de 21 milhões de casos e quase 600mil óbitos, com apenas quatro em cada dez brasileiros com o esquema completo de vacinação, mas já se observando relevante tendência de queda nas curvas de incidência e mortalidade em todo o país.
O profundo impacto no âmbito financeiro e o desemprego resultante, ocasionados pela pandemia ainda vigente, acentuaram ainda mais as desigualdades socioeconômicas da população, com redução substancial no acesso a bens e serviços essenciais, inclusive na assistência médica. A rede social de apoio, suporte e solidariedade dos governos e da iniciativa privada, bem como das entidades não governamentais, embora surpreendentemente amplas, com algumas até generosas, mostraram-se insuficientes para fazer frente à premência das necessidades.
Perdemos todos, mas perde sobretudo a população mais frágil, os moradores das periferias urbanas e das favelas (6% da população brasileira) das grandes cidades, bem como dos bolsões de pobreza ainda existentes na sociedade moderna. Nestes, a incidência da COVID-19 e as taxas de mortalidade são significativamente e lamentavelmente maiores.
Perdem também as crianças, os idosos e as mulheres. As primeiras, não só pelo confinamento, mas pelo afastamento compulsório das escolas e do convívio social e familiar mais amplo, com efeitos a curto, médio e longo prazos, ainda incalculáveis. Os idosos, pelo medo e pelo isolamento a que foram intensamente submetidos, tolhidos igualmente do convívio social e familiar, todos sob o manto da tragédia anunciada da maior incidência e mortalidade de uma doença ainda desconhecida em sua plenitude, mas preferencialmente observada dentre eles, sobretudo naqueles acima de sessenta anos. Para as mulheres, a situação agrava-se ainda mais, considerando-se os alarmantes e crescentes índices de violência doméstica, tristemente observados e relatados durante a pandemia.
Em outra vertente, sofre ainda mais a população em geral, com seus males e desafios de saúde já existentes, crônicos, relegados a segundo plano durante a pandemia, considerando o medo e o isolamento domiciliar a que todos foram submetidos. Consultas ambulatoriais de rotina deixaram de ser realizadas. Leitos, insumos hospitalares e equipamentos de proteção individual foram todos contingenciados para o enfrentamento dos pacientes acometidos pela COVID-19. Procedimentos cirúrgicos eletivos foram suspensos e adiados. A prevenção do câncer, os cuidados e os controles médicos preventivos em todas as especialidades médicas, foram todos postergados para o período pós-pandêmico, que insiste em não chegar.
Surge assim uma outra pandemia, silenciosa, traiçoeira e devastadora, paralela à vigente, com todos os seus efeitos danosos à população: câncer diagnosticado em fases incuráveis, obesidade, sedentarismo, hipertensão arterial e diabetes mellitus descontrolados, acidente vascular cerebral (AVC), infarto agudo do miocárdio, dentre tantas outras morbidades não diagnosticadas e tratadas adequadamente e em tempo hábil, agravando os respectivos prognósticos.
Um capítulo à parte refere-se à saúde mental da população. Distúrbios do pânico, depressão, e transtornos de ansiedade generalizada aumentaram sobremaneira os seus índices durante a pandemia, passando a ocupar parcela substancial dos atendimentos médicos e psicológicos.
Agravando ainda mais o cenário pandêmico, um conjunto de desinformações, fake news e dúvidas veiculadas e disponibilizadas à população através das mídias sociais, por profissionais de todas as matizes, sejam da área de saúde ou não, muitos com vieses ideológicos em detrimento da ciência, ao lado de uma classe política desalinhada com as necessidades mais prementes do seu povo, foram, no conjunto, fatores que sabidamente agravaram os impactos deletérios da COVID-19 na população.
Mas, na outra face da pandemia, mesmo diante do cenário acima descrito, ganhos foram observados e obtidos sim.
A ciência e a comunidade científica consolidam-se cada vez mais, tendo sido o norte e a esperança maior dos países e dos seus povos para fazer frente à COVID-19 e às suas consequências. Vacinas foram descobertas e produzidas em tempo recorde, ao lado dos insumos e equipamentos médico-hospitalares. O SUS, por seu turno, mesmo com todas as suas deficiências de gestão, financiamento e governança, e a despeito dos criminosos desvios de recursos e fraudes perpetrados por inescrupulosos gestores públicos e fornecedores terceirizados, demonstrou ser, através de sua capilaridade territorial e do espetacular envolvimento e comprometimento de todos os seus abnegados profissionais, um abrigo e instância primeira para a maioria expressiva do povo brasileiro.
O nosso parque tecnológico industrial para produção de vacinas e insumos firmou-se como um grande, necessário e estratégico parceiro para o Brasil e para o seu povo, que, ao lado dos nossos cientistas e do know-how em programas nacionais de imunização e parcerias internacionais, permitiram o enfrentamento da pandemia, dentro de um amplo programa de vacinação (ainda que com problemas no quantitativo e no seu timing), responsáveis pela queda recente nos índices de novos casos e óbitos no país.
A Telemedicina, autorizada em caráter especial pelo Conselho Federal de Medicina, firmou-se como uma tendência concreta no Brasil, levando atendimento e tratamento médico aos rincões de um país com dimensões continentais. Caminho sem volta, assim como a Inteligência Artificial que, com seus algoritmos preditivos, demonstrou, igualmente, sua potencialidade na gestão, na assistência e no desenvolvimento de novos fármacos relacionados à COVID-19.
A educação a distância (EaD) e o home office foram capazes de preencher o gigantesco vazio das escolas e do trabalho. Paradigmas foram quebrados e uma nova ordem se impõe, com novos formatos no processo de educação e nas relações de trabalho vigentes, possivelmente híbridos a partir de agora.
Surpreendentemente, com a permanência prolongada das famílias por um período maior em casa, ao lado do home office, houve um crescimento do mercado imobiliário nacional, atingindo níveis inesperados, porém dentro de uma nova configuração, com a necessidade de espaços maiores e adequados para esse novo momento.
O crescimento do e-commerce por seu turno, ao lado do mercado de produtos digitais, foram também tendências observadas e consolidadas durante o período pandêmico, como mais uma nova ferramenta, e que, doravante, já se apresenta incorporada e em definitivo na vida dos brasileiros.
Já a metodologia científica, por sua vez, experimentou um salto espetacular. Nunca se mencionou tanto em meetings virtuais, nas mídias e nos telejornais sobre o tema COVID-19, termos que mais pertencem ao meio acadêmico, a exemplo de evidências científicas, metanálises, estudos retrospectivos e prospectivos, curvas de incidência e mortalidade, bem como amostra populacional. Paralelamente a toda essa popularização dos estudos e termos da pesquisa científica, houve um incremento da consciência sanitária da população, que incorporou, na sua rotina, a forma correta de lavagem das mãos e o poder do uso das máscaras e do distanciamento físico na redução da transmissibilidade das doenças por via respiratória.
Mas ainda assim, seguimos com enormes desafios, a exemplo do surgimento de novas variantes do vírus, a não aceitação da vacinação por uma parcela considerável da população, o período pós-COVID e todas as complicações tardias da doença, que irão, no seu conjunto, sobrecarregar ainda mais o sistema de saúde público e privado, já esgotados e fragilizados. A propósito, a saúde suplementar, que a princípio teve uma paradoxal queda na sua sinistralidade, associada a um ganho expressivo no número de usuários durante a pandemia, assiste, nos últimos meses, a um crescimento preocupante dos seus indicadores de uso do plano pelos beneficiários, agravados pelo redutor imposto pela agência nacional de saúde suplementar(ANS).
A recuperação econômica dos países dentro desse cenário que se apresenta na nova ordem mundial, ao lado dos impactos a longo prazo em todas as esferas mencionadas, são temas obrigatórios na pauta dos encontros multilaterais dos governos e dos seus líderes no período pós-pandemia, assim como da Organização Mundial de Saúde.
Por fim, pode-se afirmar, com convicção e dentro do contexto observado, que, na equação do perde e ganha da pandemia, a resultante dos seus impactos sobre a humanidade, com efeitos imediatos e tardios, será sentida e observada por décadas. Ademais, tem-se posto já que, nesse mundo globalizado, sem muros e sem fronteiras, com povos integrados e migrantes, a próxima pandemia não é questão de se teremos ou não, mas de quando será. Preparemo-nos, portanto!
Fonte: Gláucio Nóbrega
Créditos: Gláucio Nóbrega