Furtar os orçamentos públicos, sejam lá quais forem, não é uma prática inovadora na insana republiqueta brasileira. Em princípios dos anos 90 do século passado, um grupo de homúnculos públicos (sem referência jocosa a seus portes físicos, mas a suas atitudes indecentes), despertou ódio generalizado. E ganhou celebridade protagonizando um escândalo que ficou conhecido como dos “anões do orçamento”. Alguns parlamentares infiltraram-se na Comissão do Orçamento, aproveitando-se do aumento de poder do Congresso Nacional na distribuição de verbas. E amealharam mais de R$ 100 milhões em propinas para favorecer governadores, prefeitos, ministros, senadores e deputados. O esquema teria sido articulado pelo deputado federal João Alves de Almeida, que fazia parte do colegiado desde 1972. A pretexto de colaborar com o Poder Executivo, ele impedia que colegas parlamentares fizessem mudanças em projetos e, em troca, acertava a inclusão e aprovação de emendas parlamentares entre os gastos oficiais, cujas verbas eram direcionadas para seus redutos eleitorais.
A rapina tornou-se notória em 1993, por iniciativa do economista José Carlos Alves dos Santos, ex-chefe da assessoria técnica da referida comissão, que denunciou as fraudes. Parlamentares remetiam verbas para entidades filantrópicas ligadas a parentes e laranjas. E também acertavam com as empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e OAS a inclusão de verbas orçamentárias para grandes obras, em troca de milionárias comissões. Segundo o que foi apurado na Comissão Parlamentar de Inquérito do Orçamento, cada deputado recebia entre 5% e 20% do valor da obra. O paulista Eduardo Suplicy, à época senador, chegou a viajar para Nova York para tentar contato com a mulher do delator, a assessora do Ministério da Educação Ana Elizabeth Lofrano. Mas ela tinha sido enterrada viva por seqüestradores contratados pelo marido para matá-la e eliminar um arquivo vivo, que poderia denunciá-lo.
Delatado pelos falsos sequestradores, o burocrata foi condenado e preso. Tentou o suicídio na prisão, mas sobreviveu e, 21 anos depois de ser denunciado por fraude, foi beneficiado por indulto após ter cumprido um terço de uma pena de sete anos, nove meses e dez dias de prisão. Em janeiro de 2017, livre, leve e solto, ele fez, em depoimento a Laryssa Borges e Marcela Mattos, da Veja, uma comparação do escândalo que denunciou com as denúncias que levaram às condenações da Lava Jato. Ele disse o seguinte: “Os lobistas e as empreiteiras estão aí. Eu citei todos eles, e todos eles continuam aí até hoje do mesmo jeito. Evidentemente tudo se aperfeiçoa, mas, em princípio, o esquema da Lava Jato é basicamente igual: uma empreiteira dá dinheiro ao parlamentar. O parlamentar, então, vota a emenda, depois vai lutar pela liberação dos recursos junto ao ministério e ganha mais uma comissão.”
À época e a propósito dos “anões”, publiquei o roman-à-clef Veneno na Veia, no qual dei ao protagonista a identidade fictícia de Marçal, adaptado de Mersault, o assassino do árabe da novela O Estrangeiro, de Albert Camus. Falei sobre essa técnica romanesca de narrar fatos reais com nomes fictícios na conferência intitulada Romance de Gancho: Açougue Literário ou Sopa de Letras para o Povo, que pronunciei num seminário de literatura no Teatro Municipal de Campina Grande. Na ocasião, descrevi: “Este não é um romance de aventuras, mas o romance de nossa desventura”. Ariano Suassuna gostou tanto da definição que a usou como epígrafe num capítulo de seu póstumo Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores.
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Mal sabia o gênio do teatro brasileiro que essa frase viria a ganhar nova versão ampliada num caso ainda mais indecente do que o dos “anões”, que inspirou meu livro. Pois nele as cúpulas dos Poderes Legislativo e Executivo se locupletam em plena “transição” do desgoverno fascistoide de Jair Messias Bolsonaro para sua continuação na futura gestão do mais popular líder de esquerda da História do Brasil, o ex-dirigente sindical Luiz Inácio Lula da Silva. De fato, o orçamento secreto, ao negar transparência e publicidade à destinação de verbas públicas, engendrado por Artur Lira, presidente da Câmara, e Jair Messias Bolsonaro, chefe do Poder Executivo, começa a ser destinado à perenidade. E sob o olhar, se não cúmplice no mínimo complacente, dos chefões das instituições que se dizem garantidoras do prosseguimento das virtudes democráticas numa res publica de verdade. O Supremo Tribunal Federal (STF) adota passos de cágado para tornar obrigatória a revelação dos beneficiários dos milhões de reais do que é chamado de “emendas de relator”. Exatamente no momento em que, em nome das esmolas que promete distribuir ao povão desassistido, desempregado e faminto, o governo da aliança dos Partidos dos Trabalhadores (PT) e Socialista Brasileiro (PSB) promove o arrombamento do teto dos gastos em R$ 168 bilhões em pelo menos dois anos, mandando para os cafundós conquistas de estabilidade monetária e equilíbrio fiscal usufruídos nestes tristes trópicos desde o Plano Real.
Os “Anões do Orçamento” não são apenas os pioneiros dessa infâmia que vitima os pobres, usados como pretexto para a gigantesca tunga. O mais sórdido dessa repetição, registrada e profetizada pelo ex-economista da Comissão do Orçamento, é que, desta vez, o assalto ao pacto das contas públicas não se faz mais disfarçada. E, sim, explícita. Até recentemente não se sabia ao certo quem mandava e quem servia no uso do pé de cabra para arrombar os cofres da viúva. Seria o presidente da Câmara ou o chefe do desgoverno? Agora fica tudo claro: todos da elite mandatária são artífices e sócios do furto espetacular, mantido em sigilo eterno: Bolsonaro, Lira e Lula são agentes funerários do enterro do sonho da República democrática e transparente, como devia ser. Os outros beneficiários, protegidos pela desfaçatez, contam com a cumplicidade de grei: são os congregados do segredo satânico da corrupção sistêmica. Sob a indulgência plena dos pontífices do poder que discrimina, em vez de integrar.
Fonte: Assessoria
Créditos: Assessoria