O assassinato da pequena Ágatha Félix, de apenas 8 anos, que foi vítima de um tiro de fuzil que, de acordo com testemunhas, foi disparado pela Polícia Militar, reacendeu o debate sobre a política genocida de “segurança” do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.
Dois dias após o assassinato da criança, que chocou o país, Witzel veio à público para dizer que a menina foi atingida em um “confronto” da PM com traficantes e, diante das críticas que o responsabilizam pela escalada de assassinatos promovidos pela política no estado, o governador colocou a culpa nos usuários de drogas que, segundo ele, seriam os financiadores do tráfico e, consequentemente, culpados pela violência em favelas.
A narrativa de Witzel foi encampada por boa parte da direita bolsonarista, mas faz parte de uma velha retórica da lógica da guerra às drogas, que criminaliza o usuário, faz explodir a violência urbana e não ataca a raiz do problema. Especialistas apontam que a origem da violência policial nas favelas tem relação com o poder do tráfico, que não existiria se as drogas não fossem proibidas. É justamente o proibicionismo, portanto, que fomenta o tráfico de drogas e, por consequência, os confrontos em favelas e comunidades. Quem paga a conta dessa guerra falida, como sempre, são pretos e pobres.
Pedro Mara, professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, conhece bem a realidade das favelas e discorda totalmente do argumento do governador, que culpabiliza os usuários de drogas. Ativista antiproibicionista, Mara, atualmente, dá aulas na Favela da Maré e no Complexo do Alemão – onde a menina Ágatha foi morta – e vai além no argumento: a violência policial nas favelas esconde, segundo ele, a relação do poder público com as milícias.
“Colocar a culpa em usuários certamente é mais fácil do que explicar a PM alugando o Caveirão para traficantes, ou a lista de propina que os policiais recebiam do tráfico no Batalhão de Rocha Miranda, ou dos policiais que vendiam, eles mesmos, a droga no Batalhão de São Gonçalo. A política de segurança atual é uma tragédia que mata inocentes que, por ‘coincidência’, são pobres, negros e favelados. A desculpa do usuário financiando tráfico talvez seja o melhor que o governador consiga fazer para justificar o injustificável. Falar que a culpa é do usuário de drogas é tentar esconder a enorme estrutura de corrupção que envolve policiais e a alta cúpula da segurança pública que lucra milhões de reais”, disse o professor, que é doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista à Fórum.
Em 2017, Mara foi perseguido pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que havia solicitado investigação na Secretaria de Educação e no Ministério Público para expulsá-lo da direção do Centro Integrado de Ensino Profissionalizante (Ciep), por suposta apologia à maconha. Em seguida, Ronnie Lessa, um dos acusados de assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes, passou a investigar sua vida, o que consta no relatório do caso da ex-vereadora. Alvo constante de ameças de morte por parte da milícia, o professor teve que se afastar do Rio de Janeiro por mais de uma vez e chegou a renunciar à direção do Ciep.
À Fórum, Mara lembrou que Witzel foi apoiado, em sua eleição, justamente por Flávio Bolsonaro, que mantém relação próxima com milicianos, e chama a atenção para o fato de que em áreas controladas por milícias não há registros de intervenções violentas da PM. Um estudo feito através de dados do projeto Fogo Cruzado confirma a tese do professor.
“O governador é o responsável por essa carnificina – que nada indica que vai parar. Dar tiro em favela é fácil, difícil é prender o maior miliciano do Rio de Janeiro, o capitão Adriano de Nóbrega, que empregava parentes até pouco tempo atrás no gabinete do Flávio Bolsonaro”, pontuou.
Para o professor, é preciso repensar a política de drogas. “Em nome da lei de drogas organiza-se uma política que diz que a favela é o local do abate, matando vários Silvas e destruindo famílias inteiras. Mas chegou o momento da conclusão: ou derrotamos a política de segurança do governador ou seremos assassinados todos os dias nas comunidades”.
Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.
Fórum – Depois do assassinato de mais uma criança em uma favela do RJ, o governador Witzel, bem como parte da direita bolsonarista, resgataram o argumento de que a culpa pelas mortes nas favelas são dos usuários de drogas, que financiariam o tráfico. Como você avalia esse argumento?
Pedro Mara – Colocar a culpa em usuários certamente é mais fácil do que explicar a PM alugando o Caveirão para traficantes, ou a lista de propina que os policiais recebiam do tráfico no Batalhão de Rocha Miranda, ou dos policiais que vendiam, eles mesmos, a droga no Batalhão de São Gonçalo. A política de segurança atual é uma tragédia que mata inocentes que, por “coincidência”, são pobres, negros e favelados. A desculpa do usuário financiando tráfico talvez seja o melhor que o governador consiga fazer para justificar O INJUSTIFICÁVEL. Falar que a culpa é do usuário de drogas é tentar esconder a enorme estrutura de corrupção que envolve policiais e a alta cúpula da segurança pública que lucra milhões de reais.
Fórum – Reforçar a lógica da guerra às drogas aumenta a violência? Por que?
Pedro Mara – A política de guerra às drogas do governador é uma política de guerra aos pobres e, principalmente, racista, porque criminaliza as favelas. Todo mês choramos por alguma criança inocente que é assassinada. O discurso de guerra do governador faz um PM se sentir autorizado a disparar um tiro de fuzil às 7 da noite em uma rua movimentada, como foi o que vitimou a pequena Ágatha. Mas o que está por trás da guerra às drogas, na verdade, é a disputa dos territórios das favelas por grupos milicianos. E este governo do Witzel teve como fiador eleitoral o maior miliciano do Rio de Janeiro: o senador Flávio Bolsonaro. Não por acaso que os confrontos ocorrem apenas em algumas áreas do Rio de Janeiro, nas áreas de milícia, não.
Fórum – Por que as vítimas das guerras às drogas são sempre os negros e moradores de favelas?
Pedro Mara – A segurança pública é um problema sério que precisa ser enfrentado com inteligência e não com a demagogia e espetacularização do massacre nas favelas promovido pelo governador Witzel. Toda semana é um horror e uma barbaridade diferente: helicóptero disparando rajada de metralhadora sobre escolas; PMs dando tiros de fuzis em ruas movimentadas no horário de retorno da escola e do trabalho; casas destruídas por Caveirões, entre outras diversas barbaridades. É uma política de enxugar gelo que não nos leva a lugar nenhum, a não ser ao mito da bala perdida que sempre tem destino certo: corpos negros e favelados, nunca brancos e do Leblon. O governador é o responsável por essa carnificina – que nada indica que vai parar. Dar tiro em favela é fácil, difícil é prender o maior miliciano do Rio de Janeiro, o capitão Adriano de Nóbrega, que empregava parentes até pouco tempo atrás no gabinete do Flávio Bolsonaro.
Fórum – Muitos dos que argumentam que o usuário é o culpado pelo tráfico e pela violência dizem também que a legalização das drogas aumentaria o consumo. É correto afirmar isso? Quais você acredita que seriam os efeitos de uma legalização?
Pedro Mara – Os efeitos perversos são sentidos pela política atual de proibição e de guerra às drogas. O mundo todo seguiu outro caminho depois de 20 anos de uma guerra às drogas perdida. Legalizar a maconha poderia ser um caminho, mas a hipocrisia dos fanáticos e milicianos que estão no poder prefere olhar o mundo como eles acham que é e não como a ciência diz que é. Exemplo disso foi a censura ao estudo sobre drogas elaborado pela Fiocruz.
Fórum – Você acredita que para pensar em uma política de segurança mais eficiente é preciso repensar a lei de drogas?
Pedro Mara – A Lei de Drogas precisa mudar! A Lei de Drogas gera violência, corrupção e um mercado bilionário, mas principalmente derrama sangue de pretxs e faveladxs todos os dias. Em nome da lei de drogas organiza-se uma política que diz que a favela é o local do abate, matando vários Silvas e destruindo famílias inteiras. Mas chegou o momento da conclusão: ou derrotamos a política de segurança do governador ou seremos assassinados todos os dias nas comunidades.
Fonte: Revista Fórum
Créditos: Redação Revista Fórum