Análise fria

Como a soma de crise econômica, casos de corrupção e antipetismo criou onda surfada por Bolsonaro

Tornou-se representante-mor de uma onda conservadora, condensando o sentimento de grande parte do eleitorado contra o sistema político brasileiro, cujo principal alvo é o PT.

Abaixo o sistema

AIURI REBELLO, FLÁVIO COSTA E GUSTAVO MAIADO UOL, EM SÃO PAULO E EM BRASÍLIA

Ueslei Marcelino

“Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças […]. Contra o comunismo! Pela nossa liberdade! Contra o Foro de São Paulo! Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff! Pelo Exército de Caxias! Pelas nossas Forças Armadas! Por um Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é sim!”

Em Brasília, no plenário da Câmara dos Deputados, em 17 de abril de 2016, aconteceu o primeiro ato da campanha de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República. A votação decidiu pela abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Ao pronunciar seu voto pela derrubada da petista, o deputado federal elogiou o “papel histórico” do então presidente da casa, Eduardo Cunha (MDB-RJ), e homenageou a ditadura militar na figura de um seus principais agentes de repressão.

Naquele domingo, cerca de 53 mil pessoas favoráveis ao impeachment, quase todas vestidas de verde e amarelo, acompanhavam a votação em telões instalados na Esplanada dos Ministérios, à direita de um muro de metal que as separava dos manifestantes contrários ao impedimento. Ao enxergarem a imagem de Bolsonaro, renderam-se em aplausos e gritaram em uníssono: “Mito! Mito! Mito!”.

Bolsonaro deixava de ser um frequentador do chamado baixo clero da Câmara para ascender ao posto de um dos principais postulantes ao Palácio do Planalto. Ainda não era levado a sério como competidor viável nas eleições de 2018, mas a onda a seu favor já se formava, como indicava a plateia em frente ao Congresso.

Hoje filiado a outro partido (trocou o PSC pelo PSL), o capitão reformado do Exército chega ao segundo turno da eleição presidencial apontado como favorito por todas as pesquisas de intenção de voto. Tornou-se representante-mor de uma onda conservadora, condensando o sentimento de grande parte do eleitorado contra o sistema político brasileiro, cujo principal alvo é o PT. A sigla, que comandou o país por 14 anos, até o impeachment de Dilma, é para muitos, principalmente os mais jovens, a própria síntese da corrupção e ineficiência do sistema democrático.

Com um discurso marcado pelo viés autoritário e frases de efeito contra os direitos humanos e as minorias, Bolsonaro sobreviveu a um atentado a facanegou-se a participar de debates e teve uma campanha impulsionada pelas redes sociais, sobre a qual pairam suspeitas de financiamento ilegal e fabricação em série de notícias falsas para prejudicar adversários.

Justin Sullivan/Getty ImagesJustin Sullivan/Getty Images

WhatsApp: arma de campanha mesmo antes da campanha

Antes mesmo de 2018, Bolsonaro já figurava entre os políticos brasileiros com mais seguidores em redes sociais, mesmo tendo aprovado apenas dois projetos em 27 anos de vida parlamentar. Sua fama devia-se às constantes aparições na TV e a uma intensa atividade no Facebook e no Twitter, onde ele soma 10 milhões de seguidores no total.

Ainda na etapa da construção de sua candidatura, Bolsonaro defendeu a Operação Lava Jato e também “ações duras” na área de segurança pública, e ainda se pôs a favor do que chamou de “tradicional família brasileira” contra “ativismos”, a exemplo dos movimentos feminista e LGBT.

Passou a atrair não só radicais de direita, mas também um público jovem e conectado. Grupos de apoiadores se proliferaram no WhatsApp.

“Os jovens estavam frustrados com nosso sistema político. E os jovens são cultural e socialmente antissistema. Depois de mais de dez anos de governo, o PT era o sistema“, afirma o cientista político Rudá Ricci.

“Sementes” nas redes sociais

Investir nas redes sociais foi a opção encontrada pelo candidato para driblar a imprensa, além do pouco alcance do partido que escolheu para disputar a Presidência, sem muitos palanques nem tempo de televisão. No primeiro turno, por exemplo, o PSL teve 8 segundos na propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV.

“Nas eleições municipais de 2016, as redes sociais já tiveram um peso muito grande, e depois, com o que aconteceu na eleição nos EUA [a eleição de Donald Trump], era óbvio que ia se repetir por aqui”, afirmou o cientista político Malco Camargos, professor da PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e diretor do Instituto Ver Pesquisa e Estratégia. “Na pré-campanha, a turma do Bolsonaro já estava a todo vapor nas redes sociais, enquanto os outros não faziam nada muito coordenado.”

“Eles foram muito competentes na pré-campanha também na criação de ‘sementes’, nódulos de distribuição de conteúdo. Quando a campanha começou de fato, eles conseguiam fazer o conteúdo deles chegar a diversos grupos sociais diferentes, pelo WhatsApp e redes sociais”, disse Camargos. “Eles conseguiram furar a própria bolha, de eleitores alinhados com ideias de extrema-direita, e este foi o grande mérito da campanha.”

”Fake news” e suspeita de apoio ilegal

À medida que Bolsonaro aumentava o espectro de seu eleitorado, cresciam as suspeitas de que havia, dentro da campanha, um núcleo responsável pela distribuição de notícias falsas para difamar adversários, especialmente do PT, e enaltecer e defender o candidato do PSL.

Em reportagem publicada a dez dias do segundo turno, a “Folha de S.Paulo” apontou que empresas bancaram uma campanha contra o PT pelo WhatsApp. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral, e não declarada. Os contratos, que chegariam a R$ 12 milhões cada, previam disparos de centenas de milhões de mensagens.

A campanha de Fernando Haddad entrou com pedido de impugnação da chapa adversária no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que ainda não foi julgado pela corte.

Ao comentar o caso, Bolsonaro classificou a ajuda ilegal como “colaboração voluntária” e disse não ter controle sobre o que as empresas fazem. Ele negou participação no esquema.

Lúcio Távora /UOLLúcio Távora /UOL

“Bolsonaro é o único que pode quebrar o sistema”

Adalberto Imbrósio, 48, auditor fiscal em Brasília

“Dos candidatos a presidente, Bolsonaro é o único que representa uma quebra desse sistema político que vem se mantendo há décadas. Um sistema criado para que os mesmos caras permaneçam no poder e governem sem ligar para o povo.

Bolsonaro foi deputado por quase 28 anos e, sendo contrário ao sistema, do baixo clero, ele só pôde gritar durante todo esse tempo, só pôde reclamar. E foi isso que ele fez.

Ele é a ameaça a esse sistema que tem destruído nosso país. Em 30 anos, o Brasil não cresceu, o país patinou.

No processo do mensalão, ficou provado que ele foi o único parlamentar do PP que votou contra as medidas do governo Lula. Ele não seguia a orientação do partido, ele sempre foi um cara independente.

Meu primeiro voto foi em 1989, e foi no Lula. Votei nele nas eleições subsequentes. Até na Dilma eu votei. Aí, apareceu a Operação Lava Jato, eu comecei a me informar melhor e notei que havia algo errado. Em 2014, votei em Marina e, depois, contrariado, votei em Aécio. Eu me aprofundei nos estudos e percebi que o PT e o PSDB são a mesma coisa.

Dois caras me esclareceram esse estado de coisas: Enéas Carneiro e o filósofo Olavo de Carvalho. Para mim, o Enéas foi o maior político da história do Brasil. Me arrependo demais de não ter votado nele.

Bolsonaro está conseguindo mostrar que fará uma política diferente do ‘toma lá, dá cá’. Ele está recebendo de pessoas, e não de partidos. Trazendo pessoas capacitadas que estudaram a fundo os problemas do país, como os generais que fazem parte da equipe dele.”

Daniel Ramalho/AFPDaniel Ramalho/AFP

Crise econômica, antipetismo e “posto Ipiranga”

A aproximação entre Bolsonaro e o economista Paulo Guedes (na foto acima) foi decisiva ainda na fase de pré-candidatura. Foi a partir dali que ele começou a ser levado a sério pelo chamado “mercado” e a ser considerado um candidato viável.

Bolsonaro passou a tratar Guedes como seu “guru”, o “posto Ipiranga” da campanha, em referência à propaganda da rede de postos de combustíveis. Era uma sinalização ao empresariado de que o militar reformado, conhecido por defender uma agenda estatizante, estava disposto a trocá-la por um projeto de cunho liberal.

“Apesar de Paulo Guedes ter falado publicamente muita besteira do ponto de vista eleitoral, a exemplo da tarifa única do Imposto de Renda, a presença dele atraía um apoio importante de parte do empresariado”, afirmou o cientista político Rudá Ricci.

“Por outro lado, a chegada do general [Hamilton] Mourão como vice na chapa consolidou um outro lado. Para um setor mais conservador de direita, essa junção de militar linha-dura com uma concepção ultraliberal econômica começou a parecer muito vantajosa”, segundo Ricci.

Eventual superministro da Fazenda, Guedes defende um programa radical de privatizações, que não encontra apoio nem no próprio Bolsonaro, que defendeu manter “estatais estratégicas”.

Apesar da recessão, economia ficou de fora

Pouco se falou, porém, de outras propostas do candidato ou de seu guru –por exemplo, para reduzir o desemprego no país (que atualmente atinge 12,7 milhões de pessoas) e ajudar na retomada do crescimento econômico. O fato indica uma contradição: na eleição que ocorre após a maior recessão da história do país, pouco se falou de economia.

“Em 2014, o debate econômico dominou as eleições”, afirmou o economista Armando Castelar, coordenador do setor de economia aplicada do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas). “Déficit fiscal ou não, independência do Banco Central e outros temas econômicos ocuparam a maior parte da campanha. Em 1994, a campanha foi sobre o Plano Real. Em 1998, sobre a desvalorização do real. Em 2002, tivemos o compromisso do Lula com o mercado. Em 2006, estavam no centro da polêmica as privatizações. E por aí vai”, afirmou.

Um “outsider” (mesmo no sétimo mandato)

De maneira difusa, a recessão influenciou o humor do eleitor, que se voltou contra atores políticos tradicionais –a exemplo dos maiores partidos, como PT, MDB e PSDB, que comandaram ou tiveram participação nos rumos econômicos do país durante a crise, mais acentuada a partir de 2014.

Mesmo ocupando seu sétimo mandato como deputado federal, Bolsonaro obteve sucesso ao se vender como “outsider”, alguém de fora do sistema.

“Bolsonaro foi muito beneficiado sem a entrada de alguém de fora da política na eleição. Chegaram a aparecer ‘outsiders’, como Joaquim Barbosa Luciano Huck, que acabaram não entrando no jogo político“, disse o cientista político Malco Camargos. “Sobrou ele de ‘novidade’, já que era um nome do baixo clero meio à margem do sistema político tradicional.”

Contra o PT e contra “todos que estão aí”

“Não temos como entender a onda conservadora sem entender o antipetismo, e vice-versa”, avalia Camargos.

“Nas eleições passadas, em 2016, você teve a eleição do antipetismo. Naquelas eleições, o partido era o culpado por tudo: crise e corrupção. O resultado foi desastroso para a sigla, que perdeu muitas cadeiras nas câmaras municipais e prefeituras. E tudo indicava que o mesmo ia acontecer com os governos estaduais e no Congresso em 2018.”

“Mas aí continuou a Operação Lava Jato. O novo governo, que envolvia uma coalizão de MDB, PSDB e DEM, principalmente, não conseguiu dar a resposta que se esperava para a crise econômica, e a frustração tornou-se suprapartidária”, afirma o cientista político.

Os escândalos atingiram praticamente todos os políticos de projeção nacional, todos os partidos importantes, e o eleitor começou a não ver muita diferença entre o PT, que já estava marcado para morrer, e as outras siglas e seus representantes.

Simon Plestenjak/UOLSimon Plestenjak/UOL

“Voto com o mesmo entusiasmo que votei no Lula”

Rosângela Viana dos Santos, 59, cabeleireira em São Paulo

“Fui de Bolsonaro no primeiro turno e vou de novo no segundo. Ele é o candidato que compartilha da minha visão de país. A situação moral do Brasil não dá mais.

Sou espírita cristã, e Bolsonaro é o único candidato que parece respeitar isso, levar em consideração a religião, que é uma coisa muito importante para a maioria dos eleitores.

Sou pernambucana, vim viver em São Paulo no final dos anos 1980, com cinco filhos. Criei todos aqui, com muito trabalho duro. Não me ligava muito em política. Depois, comecei a prestar atenção no Lula. Achava que, por ele ser da nossa terra, vir de uma realidade muito sofrida e humilde, ele ia ajudar os mais pobres e acabar com tanta injustiça.

Em 2002 e em 2006, votei nele [Lula]. E o que aconteceu? O que melhorou? O povo ganhou o direito de se endividar? Comprar uma TV nova? Ganhar um benefício miserável que nem o Bolsa Família?

Fez, mas fez muito pouco, enquanto ele se bandeava para o lado dos empresários, dos ricos e o governo dele se afogava em corrupção. Hoje eu voto no Bolsonaro com o mesmo entusiasmo que já votei no Lula. Ele é a nossa esperança de mudança, de melhora de vida, igual o Lula já foi um dia e decepcionou tanto a gente.

O meu voto não deixa de ser uma resposta ao Lula, a tudo que ele deixou de fazer. A pior parte é que ele prometeu que ia acabar com a corrupção, e, no final, foi a corrupção que acabou com ele.

O Bolsonaro fala a língua do povo, uma linguagem simples, que todo mundo entende. Ele se preocupa com as mesmas coisas que o cidadão comum, que vai para a rua enfrentar a realidade todos os dias. 

Eu tenho até vergonha do jornalismo hoje em dia, tentando prejudicar ele, influenciar na nossa decisão… Parei de assistir ao noticiário na TV. Ficam pegando coisa de 20 anos atrás, manipulando, tirando do contexto… Jornal e esses sites grandões eu já não lia. É patético o esforço, as ‘fake news’ da imprensa. Mas isso não significa que parei de me informar. Não, senhor.

Eu acompanho tudo nas minhas redes sociais. No WhatsApp, recebo bastante coisa também. A gente tem que procurar se informar direito.

Rafaela Frutuoso/Diario Regional JSRafaela Frutuoso/Diario Regional JS

Como Bolsonaro chegou favorito ao 2º turno

 

Raul Spinassé/UOLRaul Spinassé/UOL

“Decidi votar em Bolsonaro depois que sofri um assalto”

Marina Cobalchini, 38, representante comercial em Salvador

“Eu decidi votar em Bolsonaro em julho do ano passado, quando fui assaltada na cidade em que eu moro, Salvador. O assalto aconteceu às 11h, na minha própria rua. Fiquei cerca de meia hora com um assaltante apontando uma arma para a minha cara.

Bolsonaro sempre bateu muito forte nesse assunto da violência. Eu tenho cada vez mais certeza de que essa postura dura, militar, nos dá uma sensação de que teremos ordem, disciplina, mas não será um governo autoritário. Sou súper a favor de castração química para estupradores, por exemplo. Vamos construir mais cadeias, vamos prender aqueles que têm que ser presos.

A gente já está no fundo do poço e, se continuarmos assim, viraremos uma Venezuela.

Fonte: Uol
Créditos: Uol