O novo parecer, de 11 de maio, do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG) – que pode ser votado a qualquer momento na Câmara –, propõe o limite de 6 módulos fiscais para se ter a propriedade de uma terra pública a preços irrisórios e por procedimento autodeclaratório. Seja de 15, como propunha o texto original, ou 6 módulos, a MP 910/19 torna regra legal duas fórmulas históricas do ciclo da grilagem: “o crime compensa” e “dono é quem desmata”.
Ao permitir a regularização de terras invadidas e desmatadas, mesmo após o marco temporal de 22 de julho de 2008, a medida reduz o risco e os custos das operações de grilagens, com aumento da lucratividade dos negócios com terras públicas no país. Como um todo, a medida é inconstitucional e configura ato de improbidade administrativa.
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O caso abaixo ajuda a entender na prática a situação:
“Tem um processo valendo que vai garantir terra pública regularizada deixando cada pessoa e até empresa com até 15 módulos fiscais, na Amazônia isso chega até 1650 hectares. É só apresentar para o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], o CAR [Cadastro Ambiental Rural], que nem exige comprovação de título de posse ou propriedade, basta nossa declaração. Aí é só tirar a madeira e vender, botar fogo no resto para esconder e construir uma casa e uma roça para o satélite ver que tem ocupação e exploração da terra, eles nem vão vir vistoriar. E o desmatamento e o fogo também não vão dar bandeira pra vir a vistoria, porque eles só vem se tiver uma multa que for confirmada depois de todos os recursos julgados pelo órgão ambiental, e mesmo assim, se eles vierem vistoriar, é só assinar esse tal de PRA [Programa de Regularização Ambiental] ou um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta], nem precisa aprovar um plano de recuperação, nada. E eles não vão pedir assinatura dos vizinhos no processo de regularização, é tudo por declaração só nossa!
Bom, mas depois disso tem que pagar, mas muito abaixo do valor do mercado, que é uns R$ 1.500 por hectare aqui na região, chegando a R$ 2,25 milhões os 1.500 hectares.
Se invadirmos agora, e falarmos para o Incra que entramos até dezembro de 2018, tem que pagar o valor máximo da terra nua pela tabela do Incra, nesse caso pode até ser dono de outra área, o que deve dar na nossa região uns R$ 1.178 reais o hectare. Para 1.500 hectares dá um total de R$ 1.767.000,00 milhões, que podemos pagar em até 20 anos, sendo a primeira parcela depois de 3 anos, só. Mas é tranquilo porque o Incra desde 2017 abaixou o valor máximo e médio da terra nua em 10 vezes!
Agora, para as ocupações de antes de 5 de maio de 2014, podemos pagar o valor mínimo da pauta de valores, cerca de R$ 700/há só e ainda com descontos entre 10% e 50% deste valor, o que ficaria em torno de R$ 70 a R$ 350 reais o hectare. No total, no máximo, ficaria R$ 525.000,00 mil reais os 1.500 há.. Mas para revender logo, podemos pagar à vista o valor médio da terra nua, cerca de R$ 942/ha, que dá um total de R$ 1,413 milhão, e então depois de 3 anos já pode vender. Considerando o valor de mercado atual, sem valorização da terra no período desses 3 anos, já tiramos um lucro de uns R$ 840 mil”.
O causo é real.
Um resultado prático da aplicação das novas regras da MP 910/09 e da Lei 13.465/17 (conversão da MP 759/16). Os fatos estão descritos na Nota Técnica nº 1-2020 – 2ª CCR, 4ªCCR, 5ª CCR e 6ª CCR do MPF e as pessoas envolvidas foram presas pela prática dos crimes de invasão de terras públicas (art. 20 da Lei 4.947/1966) e desmatamento de terras públicas (art, 50-A da Lei 9.605/98), e pelos crimes-meio associados como constrangimento ilegal, ameaça, lesões corporais, tortura e até homicídio de comunidades tradicionais e populações rurais; falsidade documental de título de propriedade ou posse para apresentar no CAR e no procedimento facilitado autorizado pela Medida Provisória 910 do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
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O texto em vigor atualmente permite a consolidação da propriedade sobre ocupações ilegais de terras públicas de até 2.500 hectares, agora não mais restrita à Amazônia, mas para todo o país. Além disso, ocupações irregulares ainda mais recentes poderiam ser legalizadas, perdoando os crimes de roubo de terras públicas e desmatamentos ilegais até 05 de maio de 2014 para todo o país (não mais até 22.07.2008), e até 10 de dezembro de 2018 para a Amazônia Legal, com a legitimação de ocupações feitas há pouco mais de um ano.
Isto poderá ser feito por meio de um procedimento auto-declaratório para imóveis até 15 módulos fiscais – unidade de área definida para cada município do país, que varia de 5 a 110 hectares –, sem vistoria (que se torna uma exceção) e sem assinatura dos vizinhos confrontantes, garantindo descontos de 90% a 50% sobre o valor mínima da terra nua fixada na pauta de valores elaborada pelo Incra.
O processo de regularização acelerada, baseado em autodeclarações para todo país, deve fomentar verdadeiro caos fundiário, com diversos pedidos de regularização de imóvel particular sobre Unidades de conservação e territórios indígenas e tradicionais em diversos estágios de delimitação de seus territórios. A IN nº 09 de 16 de abril de 2020 reforça a possibilidade de regularização fundiária de grilagens dentro de Terras Indígenas não homologadas.
Embora possa se reduzir o limite para 6 módulos fiscais, a natureza do procedimento auto declaratório com possibilidade de venda da terra após três anos com maior margem de lucro garantida pelo subsídio público, torna a MP 910, um estímulo a processos de grilagem, de desmatamentos ilegais, além da intensificação dos conflitos no campo.
A partir de trechos do caso acima, destacamos as principais regras da MP 910/19 em vigor desde 10 de dezembro de 2019, que incentivam a prática da grilagem e desmatamentos com recursos públicos:
1. CAR, disputa fundiária digital e construção de mercado de títulos podres
“É só apresentar para o INCRA, o CAR (Cadastro Ambiental Rural), que nem exige comprovação de título de posse ou propriedade, basta nossa declaração.”
O procedimento facilitado auto-declaratório para regularização ambiental exige a inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ocorre que o CAR é um registro eletrônico ambiental também auto-declaratório e sem prazo legal para a validação das informações prestadas. Como não há exigência de documento comprobatório de domínio, há altos índices de uso fraudulento do CAR para fins de grilagem de terras, em uma verdadeira disputa fundiária digital.
Segundo dados do Sicar (Sistema de Informações do Cadastro Ambiental Rural), até março de 2019, foram auto-declarados 78% do território nacional cadastrável como imóveis rurais particulares, ocupando 431,8 milhões de hectares. No entanto, cruzamento de cerca de 18 bases oficiais do governo realizado pelo Atlas Fundiário da Agropecuária Brasileira aponta que cerca de 44,2% do território nacional seriam ocupados por imóveis rurais particulares.
Ainda segundo o Sicar, as Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e territórios de povos e comunidades tradicionais ocupariam somados 34,5 milhões de hectares (6,33%) do total de 517 milhões de hectares cadastrados. Entretanto apenas os Territórios Indígenas homologados e em processo de homologação, segundo bases da FUNAI, contabilizam cerca de 117 milhões de ha do território nacional.
Tomar como base para política pública de regularização fundiária, cadastros auto-declaratórios significará a chancela de mais de um título sobre a mesma área, fazendo nascer um mercado de títulos pobres, sem qualquer segurança jurídica sequer para o sistema financeiro. Além de estimular o crime de invasão de terras com fins de fomentar o mercado e a especulação com o valor da terra em detrimento da atividade produtiva, podemos estar diante de um vertiginoso aumento da violência e mortes no campo principalmente contra povos indígenas e comunidades tradicionais.
2. Desrespeito ao Código Florestal – “dono é quem desmata”
“Tirar a madeira e vender, botar fogo no resto para esconder e construir uma casa e uma roça para o satélite ver que tem ocupação e exploração da terra, eles nem vão vir vistoriar(…), e mesmo assim, se eles vierem vistoriar, é só assinar esse tal de PRA (Programa de regularização Ambiental) ou um TAC (Termo de ajustamento de conduta), nem precisa aprovar um plano de recuperação, nada.”
A área beneficiária deve comprovar “cultura efetiva” e “exploração direta”, mansa e pacífica anterior a 5 de maio de 2014 para todo o país, que poderá ser feita por sensoriamento remoto, mediante exploração agropecuária do imóvel. A chamada “limpeza da terra” (retirada da madeira, destoca e fogo) é uma das principais formas de iniciar atividades agropecuárias, que passam a ser verificadas por imagens de satélite.
Não há diferenciação de desmatamentos anteriores ou posteriores ao marco temporal do Código Florestal, autorizando a regularização fundiária de desmatamentos após 22 de julho de 2008, se houver celebração do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Apenas os desmatamentos ocorridos até essa data com a adesão ao PRA geram regularização ambiental. Áreas desmatadas após esta data não podem ser elegíveis para regularização fundiária.
Áreas autuadas com infração ambiental poderão ser regularizadas até que todos os recursos administrativos sejam julgados. Versão de 11 de maio do parecer do deputado Zé Silva retira o termo “esgotamento das vias administrativas”, e a autuação da infração ambiental já exigiria vistoria obrigatória.
Mesmo imóveis com infração ambiental confirmada e áreas embargadas podem ter regularização fundiária pelo procedimento facilitado com a mera “adesão” ao PRA e “celebração” do TAC, sem exigir aprovação de plano de recuperação e compensação da área.
Novos desmatamentos não geram rescisão do título, cabe renegociação: desmatamentos em área de Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal e área de uso restrito, durante o período de cumprimento das condições exigidas do título provisório não geram rescisão do contrato, cabendo renegociação do título até 10 de dezembro de 2019. Parecer do deputado Zé Silva considera como infração à legislação ambiental apenas as autuações já confirmadas pela autoridade competente após contestação do autuado.
3. Escandaloso caso da pauta de valores do Incra: venda de patrimônio público a preços irrisórios em enriquecimento ilícito de terceiros é improbidade administrativa.
A nova Lei de Terras, a partir de dezembro de 2017 (MP 759), aplicou a pauta de preços referenciais (PPR) para obtenção de terras para reforma agrária, elaborada pelo Incra, também como referencial de preço para a venda das terras públicas para a regularização fundiária dos até 2500 hectares no país (art. 12§1 da Lei 11.952/09).
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Levantamento feito pelo MPF demonstra a redução drástica no cálculo do Valor de Terra Nua (VTN) após a publicação da Instrução Normativa Incra n° 87/2017, em comparação com o avaliado em 2015. No município de Sinop, em Mato Grosso, por exemplo, houve alteração do VTN Máximo de R$ 22.400,00 por hectare em 2015 para R$ 2.826,00 em 2017, ou seja, redução em quase 10 vezes do valor.
“Bom, mas depois disso tem que pagar, mas muito abaixo do valor do mercado”
“Se invadirmos agora, e falarmos para o Incra que entramos até dezembro de 2018, tem que pagar o valor máximo da terra nua pela tabela do INCRA. Mas é tranquilo porque o INCRA desde 2017 abaixou o valor máximo e médio da terra nua em 10 vezes!” (art. 38§1, I e II)
“Agora, para as ocupações de antes de 5 de maio de 2014, podemos pagar o valor mínimo da pauta de valores, com descontos entre 10% e 50% deste valor, (…)em até 20 anos.” (§1 e §2 do art. 12 da Lei 11.952/09). Cabe ainda mais 20% de desconto sobre o desconto já concedido em caso de pagamento a vista em até 180 dias da entrega do título.” (art. 17§2)
“Mas para revender logo, temos de pagar à vista o valor médio da terra nua, (…) e então depois de 3 anos já pode vender.” (art. 15, §2 e §3).
Os valores máximos e médios sofreram as maiores reduções, o que veio a baratear a regularização de ocupações recentes na Amazônia Legal, até 10 de dezembro de 2018 pela MP 910, que utiliza o VTN máximo. Também facilitará liberação da clausula de inalienabilidade da terra após 3 anos (estipulada pelo VTN médio), em estímulo ao mercado de terras e especulação imobiliária.
Este subsídio pode significar dano ao erário público em cerca de R$ 62 a R$ 88,5 bilhões de reais, se considerados apenas os 19,6 milhões de hectares identificados pelo programa como passíveis de titulação na Amazônia Legal. Permitir e facilitar a alienação de bem da União por preço flagrantemente inferior ao de mercado e enriquecimento ilícito de terceiros configura ato de improbidade administrativa (art. 10, IV e XII da Lei 8.429/1992).
Da colônia até os dias de hoje – grileiros de plantão, indústria madeireira, corporações do agronegócio e os donos do dinheiro – vem modificando as regras do jogo a fim de salvar seus títulos podres e seus podres poderes.
A relevância e urgência desta medida parece estar no objetivo de capturar o patrimônio público para salvar o mercado em crise. Cabe ao Congresso Nacional demonstrar que não compactua com esse ciclo econômico e legal da regularização do grande roubo de terras e recursos naturais no país.
*É advogada socioambiental, mestre em Filosofia do Direito e integrante da equipe da Grain para América Latina e membro do Grupo Carta de Belém.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Polêmica Paraíba
Fonte: Brasil de Fato
Créditos: Brasil de Fato