Ao traçar em tese acadêmica a saga da família Pessoa – Política e Parentela na Paraíba -, Linda Lewin, professora da Universidade de Berkeley, na Califórnia, observou que todos os governadores do Estado descendiam de constituintes de 1823. O conflito de 1930, com “epitacistas” cindidos entre João Pessoa e Zé Pereira, os tiroteios na campanha de José de Américo contra Argemiro de Figueiredo e a polarização da esquerda contra a direita desde 1950 não mudaram essa realidade: as disputas paraibanas não saíam das fronteiras da oligarquia estadual.
Nascido na capital do Estado e sem conexões genealógicas com latifundiários, juízes e bacharéis poderosos, Ricardo Coutinho é dado como o primeiro exemplar de outro tipo de oligarquia, surgida depois da queda da ditadura militar e da promulgação da Constituição vigente, a sindical. Egresso dos movimentos estudantis de esquerda, presidiu o Sindicato dos Farmacêuticos do Estado e fundou outro, dos Servidores Estaduais. Daí sua aproximação com o Partido dos Trabalhadores (PT), que durou pouco, mas o suficiente para marcar seu estilo autocrático e mandão. Ao contrário dos outros militantes, não se filiou a nenhuma das tendências em que a sigla de Lula se dividiu, mas fundou e comandou com pulso de ferro o coletivo Ricardo Coutinho. Nela foi eleito vereador em João Pessoa e duas vezes deputado estadual. Seu personalismo intransigente o isolou dos grupos dominantes no PT e filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), fundado por Miguel Arraes, para disputar a prefeitura da capital.
A boa fama adquirida nas gestões municipais e, posteriormente, em mais duas estaduais tornou-o independente em relação aos dois ex-governadores que então polarizavam as disputas, o emedebista José Maranhão e o tucano Cássio Cunha Lima. A fama de competente e probo fez dele uma espécie de chefão paraibano, levando à vitória para o Palácio da Redenção um desconhecido, João Azevêdo. Nas sombras manteve-se o chefão da Orcrim Ricardo Coutinho.
Líder inconteste da esquerda nordestina, chegou ao ponto de convidar Lula e Dilma para a farsa da inauguração da fictícia transposição do Rio São Francisco em Monteiro (PB). Parecia distante da hecatombe do PT após as explosões do mensalão e do petrolão. Até ficar claro que a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) não se submetiam às suas ordens, que não admitiam desobediência, nem a seu carisma de feioso sedutor.
Dois magistrados infensos a seu poder e a sua fama de herói do povo demoliram sua biografia e seu charme: o desembargador Ricardo Vital e o titular da 1.ª Vara Criminal Federal da Paraíba, Adilson Fabrício Gomes da Silva, reduzindo sua glória inoxidável a cinzas políticas.
A pá de cal foi jogada por cinco delatores premiados que protagonizaram uma reportagem do Fantástico, da Globo, no domingo. O empresário Daniel Gomes – que confessou haver pago propinas no valor de R$ 134,2 milhões, por superfaturamento bilionário nas áreas de saúde e educação de um Estado paupérrimo – entregou à PF e ao MPF oito anos de gravações. A série começou em 2010 e acompanhou os dois mandatos de Ricardo até o fim, em 2018. Policiais e procuradores assistiram a mais de mil horas de reuniões e pedidos de propina. A defesa considera as gravações inverossímeis porque as quantias citadas são “estratosféricas”. De fato, os valores lembram os que levaram o ex-governador do Rio Sérgio Cabral à condenação a 267 anos de cadeia. Mas é difícil aceitar essa desculpa amarela como argumento de defesa.
O choque supremo foi dado por sua secretária de Administração Livânia Farias, que confessou ter-lhe entregado na residência oficial R$ 4 milhões em caixas de dinheiro vivo. Foi ela que forneceu o detalhe mais pitoresco aos investigadores, ao contar que interrompia a agenda oficial do chefe usando uma senha, “trouxe mangas de Sousa”, cidade natal dela.
Ivan Burity, Maria Laura Farias e Leandro Nunes confirmaram, em delações premiadas, essas narrativas. E ninguém percebe esforço nenhum do tido como destinatário dessas propinas para disfarçar que o assunto tratado era mesmo moeda corrente. Muitos dos áudios revelados pela PF e pelo MPF foram feitos em 2017, terceiro ano de atividade da Operação Lava Jato, o que por si só dá ideia do risco.
Em entrevista ao UOL, Coutinho deu-se ao luxo de defender seu líder máximo, o também ex-sindicalista Lula da Silva, e execrar a Lava Jato e o ministro da Justiça, Sergio Moro. Condenado por 9 a 0 em três instâncias, o petista também não se fez de rogado ao se pronunciar publicamente a respeito de “exageros no mandado de prisão”. No que foi seguido, é claro, pela presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, que acusa a operação de “mais um exagero daqueles que têm sido praxe de setores do Judiciário, envolvendo show midiático e interesses políticos”.
O mandado de prisão de Coutinho não foi executado de pronto porque ele se manteve foragido no exterior até ser encerrado o ano judicial. Desembarcou em Natal na sexta 20, de madrugada, e apresentou-se na Penitenciária de Segurança Média Juiz Adolfo Hitler Cantalice, na Mangabeira, em João Pessoa, no sábado 21, às 3 horas. À tarde foi solto por decisão monocrática do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Napoleão Maia. O plantão natalino está por conta do presidente da Corte, José Otávio de Noronha, mas este se disse impedido, pois seus filhos advogam para Coriolano, irmão de Ricardo. Com Félix Fisher doente e Francisco Falcão e Laurita Vaz ausentes, o caso foi entregue ao ministro que já concedeu dois habeas corpus ao socialista: um, de cassação do mandato extinto há quase um ano e ainda pendente de julgamento do plenário. Como de hábito.
Ou seja, se há juízes na Paraíba, usando a célebre frase dita pelo moleiro ao rei da Prússia, não se pode dizer o mesmo das altas Cortes de Brasília. Não é?
* JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
Fonte: Estadão
Créditos: José Nêumanne