No período de uma década, o Brasil “passou do sonho à distopia”, afirma Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris, ao comparar o cenário atual brasileiro com ficções que retratam governos totalitários ou ideologias que criam condições de vida insuportáveis à sociedade.
Em entrevista à BBC News Brasil, Estrada defende que o tripé “democracia/crescimento/previsibilidade” que fazia o Brasil ser visto há dez anos como “o campeão dos emergentes” ruiu e que o “inaceitável passou a se tornar aquilo que é normal” no governo do presidente Jair Bolsonaro.
“O Brasil vive um processo acelerado de erosão democrática”, opina o acadêmico. “Qual presidente de uma democracia reivindica sua filiação à ditadura militar e defende a tortura?”
Para sustentar sua teoria de que o país vive uma distopia — palavra usada para descrever locais sob sistemas opressores e autoritários e para designar o oposto de utopia —, Estrada cita a demissão de técnicos do Ministério da Saúde, pasta atualmente sem um ministro titular; o pedido de Bolsonaro para que seus apoiadores “arranjarem um jeito de entrar e filmar” hospitais públicos, “para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não”; e as reivindicações antidemocráticas e aparentes alusões a movimentos neonazistas feitas por simpatizantes do presidente em protestos em Brasília e outras cidades.
Para o diretor do Opalc, a destituição do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, havia unido o Brasil em torno de conquistas democráticas. Mas os consensos políticos, econômicos e sociais que existiam no Brasil começaram a se deteriorar na última década, levando ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que dividiu o país.
Gaspard Estrada dirige o Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris
Estrada argumenta que o sentimento de ódio provocado pelos casos de corrupção envolvendo o PT fez com que muitos brasileiros fechassem os olhos para “o fato de Bolsonaro rejeitar as regras do jogo democrático e do Estado de direito”.
O acadêmico acredita que muitos eleitores optaram por Bolsonaro pensando que ele poderia ser controlado pelas instituições e pelos mercados, diz ele. “Agora caiu a ficha”, afirma.
“O que estava em jogo nas eleições de 2018 era a manutenção da República da Constituição de 1988”, opina o especialista. Ele cita o livro Como as democracias morrem — dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt — e defende que o processo de degradação institucional realizado por líderes democraticamente eleitos, descrito na obra, se aplica ao Brasil.
O processo descrito por Levitsky e Ziblatt envolve a rejeição das regras da democracia, a incitação à violência (nas ruas e nas redes sociais) contra seus opositores e a vontade de restringir a ação dos rivais políticos.
“A democracia para o presidente brasileiro é algo ligado à esquerda”, diz Estrada, relembrando que Bolsonaro, em um discurso na embaixada brasileira em Washington, em 2019, declarou que sua missão era “desconstruir e desfazer muita coisa no Brasil para depois recomeçar a fazer.”
‘Filtro ideológico’
Estrada cita também “filtro ideológico” nas instituições culturais, como a Agência Nacional de Cinema (Ancine), com diretores ligados a movimentos religiosos, ou o fato de não ter havido punição no caso do chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), Fabio Wajgarten (novo secretário-executivo do recém-criado Ministério das Comunicações), que, segundo reportagem da Folha de S. Paulo, atribuiu contratos de publicidade do governo a clientes de sua própria agência. O secretário nega irregularidades.
Jair Bolsonaro e apoiadores durante uma manifestação em Brasília, semanas atrás; ‘O consenso democrático pós-1988 no Brasil já caiu por terra. A democracia brasileira já está sob tutela’, opina Estrada
Estrada também diz não entender a lógica de o Supremo Tribunal Federal barrar a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção-geral da Polícia Federal, com base no pressuposto de que ele é próximo da família Bolsonaro e poderia cometer ações ilegais, e, ao mesmo tempo, permitir que ele continue a comandar a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
“Em qualquer país do mundo, os serviços de inteligência têm mais poder e podem, por exemplo, espionar adversários políticos.”
Segundo o especialista em América Latina, “às vezes” as instituições têm funcionado no Brasil na gestão do presidente Bolsonaro. Mas diz ele, há casos flagrantes em que isso não ocorre, como a suspensão, pelo presidente do STF, Dias Toffoli, da decisão judicial que havia proibido a publicação de uma nota do ministério da Defesa celebrando o golpe militar de 1964.
O texto divulgado no site da Defesa afirma que a data foi “um marco para a democracia brasileira”.
“A decisão de Toffoli é um sinal claro de que o poder Judiciário está se curvando ao poder dos militares”, diz o analista, acrescentando que na França o revisionismo histórico, como o que ele acha que tem sido feito por alas militares e civis brasileiras em relação à ditadura, é punido por lei.
“O consenso democrático pós-1988 no Brasil já caiu por terra. A democracia brasileira já está sob tutela”, ressalta Estrada.
“Partido político militar”
De acordo com ele, o “Exército já se acostumou ao poder” e teria se tornado uma espécie de partido, sem registro, que passou a pleitear influência política, inclusive no ministério da Saúde.
Ele afirma que a apropriação, pelo Exército, de cargos de chefia na Esplanada dos Ministérios “é um fenômeno assustador, até para os partidos do centrão.”
Para parte dos oficiais, entrar no governo também significa mudar de vida, com melhores salários, destaca o analista. Segundo ele, as Forças Armadas sabem, no entanto, que estão em uma posição difícil porque já estão sendo associadas ao “desastre do governo Bolsonaro.”
Ele lembra que, além da influência política, as Forças Armadas têm recebido verbas importantes do governo para a realização de obras públicas.
O diretor do observatório da AL acha que o presidente Bolsonaro gostaria de dar um autogolpe, mas não tem força para levar isso adiante. O Exército, dividido, tem sua própria agenda, que é se instalar na máquina e governar, o que já faz, completa o especialista.
Para pesquisador, o ‘Exército já se acostumou ao poder’ e teria se tornado uma espécie de partido, sem registro, que passou a pleitear influência política
A tensão institucional vem crescendo no país. Neste mês, o presidente Bolsonaro divulgou nota assinada também pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, afirmando que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas”, como a tomada de poder, e também não aceitam “julgamentos políticos”, o que foi interpretado como uma referência às decisões contrárias aos interesses de Bolsonaro no STF e à ação que pede a cassação de sua chapa nas eleições de 2018.
A formação de uma frente ampla de oposição ao governo Bolsonaro, que reuniria diversas tendências políticas, como na época das Diretas Já, dependeria, na opinião de Estrada, do julgamento, no STF, da suspeição do ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro Sérgio Moro.
A defesa do ex-presidente Lula acusa o ex-juiz e ex-ministro da Justiça de não ter agido com imparcialidade nos processos contra Lula. “Para o Lula integrar esse movimento, tem de ocorrer antes o julgamento de suspeição do Moro. Seja qual for a decisão do STF, isso permitiria encerrar um ciclo”, afirma Estrada.
Fonte: BBC Brasil
Créditos: BBC Brasil