A Brasif S.A. Exportação e Importação ajudou Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) a enviar ao exterior recursos para a jornalista Mirian Dutra, com quem o ex-presidente manteve um relacionamento extraconjugal nos anos 1980 e 1990, e para o filho dela, Tomás Dutra.
A transferência foi feita, segundo ela, por meio da assinatura de um contrato fictício de trabalho, celebrado em dezembro de 2002 e com validade até dezembro de 2006.
Em entrevista à Folha, a jornalista afirmou que FHC usou uma empresa para bancá-la no exterior.
No documento, aparece como contratante a Eurotrade Ltd., empresa da Brasif com sede nas Ilhas Cayman.
O contrato estabelece que a jornalista deveria prestar “serviços de acompanhamento e análise do mercado de vendas a varejo a viajantes”, fazendo pesquisas “tanto em lojas convencionais como em duty free shops e tax free shops” em países da Europa.
Os dados coletados seriam enviados à Brasif, que na época explorava os free shops (lojas com isenção de impostos) de aeroportos brasileiros.
Fernando Henrique admitiu manter contas no exterior e ter mandado dinheiro para Tomás, mas nega ter usado a empresa para bancar a jornalista.
DÍVIDA
Mirian, que como jornalista trabalhou na TV Globo, afirmou à Folha que “jamais pisou” em uma loja convencional ou em um duty free para trabalhar.
E que o contrato, de US$ 3.000 mensais, foi feito para “suplementar” a renda dela e de Tomás.
“Eu trabalhava na TV Globo e tive um corte de 40% no salário em 2002. Me pagavam US$ 4.000. Eu estava superendividada, vivia de cartões de crédito e fazendo empréstimo no banco. Me arrumaram esse contrato para pagar o restante”, afirma Mirian.
O acordo foi mediado pelo jornalista e lobista Fernando Lemos, que era casado com Margrit Dutra Schmidt, irmã de Mirian.
“Ele [Lemos] disse que tinha que arrumar um jeito de melhorar a minha vida financeira, já que eu tinha uma hipoteca [de um apartamento que comprou em Barcelona, na Espanha] e a Globo tinha cortado o meu salário.”
Lemos, morto em 2012, e Margrit faziam a ponte entre a jornalista e Fernando Henrique, então presidente, que não tinha como manter contato frequente com Mirian.
PESQUISA
A jornalista diz que, numa conversa, dois anos depois da vigência do contrato, Fernando Henrique revelou que o dinheiro enviado pela Brasif era, na verdade, dele, e não da empresa.
“Ele me contou que depositou US$ 100 mil na conta da Brasif no exterior, para a empresa fazer o contrato e ir me pagando por mês, como um contrato normal. O dinheiro não saiu dos cofres da Brasif e sim do bolso do FHC”, diz.
O empresário Jonas Barcellos, dono da Brasif, não nega o acerto. Mas diz não se lembrar de detalhes.
“Tem alguma coisa, mesmo, sim”, afirmou ele, quando questionado pela Folha sobre ter assinado um contrato com Mirian para ajudar FHC a enviar recursos a ela. “Eu só não sei se era contrato”, declarou.
Barcellos disse que estava em Aspen, nos EUA, e que voltará ao Brasil na próxima semana. “Vou fazer um levantamento na empresa para esclarecer tudo”.
Questionado sobre ter tratado do tema com FHC, respondeu: “Faz muito tempo, eu preciso pesquisar e me lembrar para responder.”
Mirian e Fernando Henrique mantiveram um relacionamento extraconjugal por seis anos. No período, ficou grávida. Depois do nascimento de Tomás, pediu à emissora que a transferisse para Portugal.
FHC não registrou Tomás. Mas nunca questionou a paternidade e sempre o tratou como filho, responsabilizando-se por parte do sustento do jovem no exterior.
Em 2009, a Folha revelou que o ex-presidente havia decidido reconhecer o filho na Espanha, onde Tomás vivia com a mãe.
“Eu sempre cuidei dele”, afirmou na época ao jornal.
Dois anos depois, o ex-presidente fez dois exames de DNA com Tomás.
Os resultados deram negativo, o que provaria que o jovem não é seu filho biológico. FHC afirmou publicamente que o exame em nada alterava a situação e que ele seguiria reconhecendo Tomás como seu filho.
CONGLOMERADO
Fundado em 1965, o grupo Brasif atua em diversos setores, como venda e aluguel de máquinas pesadas, biotecnologia animal e varejo de vestuário. A operação dos free shops foi vendida em 2006 para o grupo suíço Dufry, por US$ 500 milhões.
Folha – Por que decidiu falar, depois de 30 anos?
Mirian Dutra – Para mim foi muito difícil. É muito complicado porque a minha vida inteira sempre foi trabalho e, de repente, essa história pessoal cruzou a minha vida.
Como foi a história de vocês?
Eu o conheci em janeiro de 1985, quando Tancredo [Neves] estava no hospital. Eu estava jantando no restaurante Piantella [em Brasília] com vários amigos jornalistas e ele entrou sozinho. Um amigo jornalista o convidou para a nossa mesa.
Logo que a gente se conheceu, um mês depois, ele disse para mim, era o governo Sarney: “Vai ter espaço para mim. Eu tenho que ser presidente. Só eu tenho capacidade para levar este país”.
Dei a entrevista à revista “BrazilcomZ” para desmentir tudo o que escreveram ao meu respeito. Eu quero que meu nome não fique numa rede social como uma rameira. Eu fui uma pessoa apaixonada por um homem. Quando tentei sair
Descobriu que estava grávida
Eu estava grávida de quase três meses. Eu não estava aguentando mais essa história toda de ser amante, de ser a outra. Aí eu fiquei quieta, esperei ele voltar [de viagem] e, quando voltou, foi jantar na minha casa.
Quando disse que estava grávida, ele disse “você pode ter este filho de quem você quiser, menos meu”. Eu falei: “não acredito que estou escutando isso de uma pessoa que está há seis anos comigo”.
Ele pediu para você abortar?
Pediu. Óbvio. “Eu te pago o aborto agora”, disse. Aliás, vou te contar uma coisa mais séria ainda. Durante os seis anos com ele, fiquei grávida outras duas vezes, e eu abortei.
Ele soube?
Ele pagou. Pagou por dois abortos. Eu não queria ter outro filho, eu tinha minha filha estava muito feliz. Nunca pude tomar pílula, colocar DIU [método intrauterino], porque tenho um problema de rejeição absoluta a hormônio que venha de fora. Ele sabia disso.
O que houve a partir daí?
Aí que, pela primeira vez, em seis anos, ele deixa de falar comigo. Porque sentiu que a decisão era firme. Aí eu disse que não tinha que contar para ninguém quem era o pai, que era livre e desimpedida.
Ficaram sem se falar até o nascimento do seu filho?
Ele foi umas duas ou três vezes na minha casa. Quinze dias depois do nascimento, ele foi me visitar. Minha mãe estava lá [em casa] quando ele foi conhecer o filho. Só que eu tinha decidido que eu iria embora [do Brasil]. Aí antecipei todos os meus planos e meio que fugi mesmo. Lembro que, quando do impeachment do Collor, vi esse homem [FHC] lambendo as botas do Itamar [Franco], que ele criticava a vida inteira. Fui buscar trabalho em Portugal. Recebi ajuda do [ex-senador] Jorge Bornhausen, que era meu amigo de Santa Catarina.
Mas ele reconheceu o filho…
Nunca fez.
Por que você não o desmentiu à época?
Em 2009, ele foi para os Estados Unidos e simplesmente colocou na cabeça do Tomás que o Tomás não poderia contar para mim, mas que iriam fazer um DNA. Ele visitava o Tomás nos EUA depois da Presidência. Mas nunca foi criado com pai nenhum. Nunca me casei, nunca tive namorado, esse departamento [namoro] se encerrou na minha vida.
Ele bancou seu filho fora do Brasil?
Quando Tomás fez três anos de idade, isso foi mais ou menos em 1994, aceitei que ele pagasse o colégio do Tomás, pois queria que ele estudasse num bom colégio. A partir daí, ele pagou. Quando vim para Barcelona, que é quando eu digo que fui exilada, porque eu queria voltar para o Brasil e não permitiram que eu voltasse…
Quem não permitiu?
[O então senador] Antonio Carlos Magalhães pediu para que eu não voltasse para o Brasil, o Luís Eduardo Magalhães [filho de ACM]. Diziam para ficar longe. Diziam “deixa a gente resolver essas coisas aqui”. Aí eu pensei e achei que, para os meus filhos, era melhor eu ficar [no exterior], pois eles seriam muito perseguidos no Brasil.
Eu tinha que ter metido a boca no trombone no começo. Eles não aceitaram porque estavam em plena história da reeleição. Isso isso foi quando Fernando Henrique estava tentando mudar a Constituição. É uma coisa estranha porque eu lembro que quando [José] Sarney quis ficar cinco anos, ele estava na minha casa jantando e deu um baile: “como este homem pode ficar cinco anos? O poder tem que ser quatro anos, e renovável”. E aí tem uma história muito cabeluda nisso tudo, que ele, por meio de uma empresa, mandava um dinheiro para mim.
Que empresa?
Não sei se eu posso falar. Não quero falar. Foi por meio de uma empresa que ele bancou.
Você não quer nominar, mas tem como provar? Algum recibo?
Tenho. Tenho contrato. Tudo guardado aqui. É muito sério. Por que ninguém nunca investigou isso? Por que ninguém nunca investigou as contas que o Fernando Henrique tem aqui fora?
Contas?
Claro que ele tem contas. Como ele deu, em 2015, um apartamento de € 200 mil para o filho que ele agora diz que não é dele? Ele deu um apartamento para o Tomás.
O exame de DNA diz que o Tomás não é filho dele…
É dele [e gargalha]. É óbvio que é dele.
Você afirma então que ele forjou o exame de DNA?
Não estou afirmando nada, mas tudo me parece muito estranho, porque eu nunca me neguei a fazer o exame de DNA. Não vou afirmar porque isso seria uma irresponsabilidade da minha parte. Além do mais, uma mulher sabe quem é o pai. A não ser que provem que Deus é o pai do meu filho.
Você teve alguma outra relação no período?
Claro que não.
Gostaria de voltar à empresa. Como foi esse acerto para você receber esse dinheiro?
O ex-marido da minha irmã, o Fernando Lemos [morto em 2012], era o maior lobista de Brasília e era ele quem conseguia tudo. Eu sempre fui muito ingênua nessas coisas. Eu não devia nada a ninguém, por que eu ficaria cheia de pecados e pruridos? Eles fizeram contrato comigo como se eu fosse funcionária deles [da empresa], só que eles nunca me permitiram trabalhar e aí eu ganhava.
Isso acabou quando?
Dois anos depois que ele saiu do governo.
Por que você nunca expôs essa história? Você, como jornalista, não sabia que era irregular uma empresa pagar em nome do presidente?
Eu acho que eu tinha que ter feito um escândalo quando eu fiquei grávida. Depois, as coisas foram acontecendo, entendeu? Meus filhos ficaram maiores e eu já não podia ficar fazendo tanta confusão.
E por que você decidiu falar agora?
Porque eu estou cansada de ver pessoas escrevendo coisas erradas, essa história do DNA. Estou cansada de tudo isso. Eu não quero morrer amanhã e tudo isso ficar na tumba. Eu quero falar e fechar a página. E quero tentar ser feliz, porque eu não consegui até hoje.
Alguém está por trás de sua quebra de silêncio?
Ninguém. Eu vivo absolutamente sozinha na Espanha, nunca vivi tão sozinha como agora. Vivo com um cachorrinho chamado Xico, com X, não tenho vida social, não tenho nada, até pela minha fibromialgia e pela polipose adenomatosa. Eu não estou falando isso para tirar proveito de absolutamente nada. Estou lavando a minha alma. É muito difícil você ser xingada por milhões de pessoas e não vou deixar isso acontecer mais. Não podia entrar na justiça contra porque eu trabalhava na TV Globo.
E agora que não trabalha mais lá você optou por falar…
Exatamente. Eu agora não devo mais nada a ninguém.
OUTRO LADO
O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) admitiu manter contas no exterior, ter mandado dinheiro para Tomás e ter lhe presenteado recentemente com um apartamento de € 200 mil em Barcelona, na Espanha.
O ex-presidente diz que os recursos enviados a Tomás –tanto para a compra do apartamento, quanto para ajudá-lo em seus estudos– provêm de “rendas legítimas” de seu trabalho, depositadas em contas legais e declaradas ao Imposto de Renda.
Segundo ele, as contas estão “mantidas no Banco do Brasil em Nova York e Miami ou no Novo Banco, em Madri, quando não em bancos no Brasil”.
“Nenhuma outra empresa, salvos as bancárias já referidas, foi utilizada por mim para fazer esses pagamentos”, afirma FHC.
O ex-presidente diz ainda que o repasse dos recursos para que Tomás comprasse o apartamento em Barcelona foi feito por meio de transferências de sua conta bancária no Bradesco “com o conhecimento do Banco Central” brasileiro.
DNA
Embora Mirian negue, FHC diz ter reconhecido Tomás em 2009, o ex-presidente afirma ter feito dois testes de DNA nos Estados Unidos.
“[Com] o propósito de dar continuidade a meu desejo de fundamentar declarações feitas por mim em Madri de que Tomás seria meu filho”, declarou o ex-presidente.
“Para nossa surpresa, o primeiro teste deu negativo, daí [fizemos] o segundo, que também comprovou que não sou pai biológico do referido jovem”, declarou FHC.
Mirian diz que os testes foram feitos sem que ela soubesse e que o ex-presidente pediu para que Tomás não lhe contasse nada.
FHC rebate as afirmações da jornalista dizendo que se dispôs a fazer outro teste de DNA e, mesmo diante dos resultados negativos, procurou manter “manter as mesmas relações afetivas e materiais com o Tomás”.
O ex-presidente afirma ainda que, “quando possível”, atende Tomás nas necessidades afetivas.
O ex-presidente não respondeu a acusação de que teria pagado para que Mirian fizesse dois abortos antes da gravidez de Tomás.
Declarou apenas: “Questões de natureza íntima, minhas ou de quem sejam, devem se manter no âmbito privado a que pertencem”.
Sobre Mirian afirmar que [o então senador baiano] Antonio Carlos Magalhães pediu para que a TV Globo não a mandasse de volta ao Brasil para, segundo ela disse, “ficar longe” de FHC, o ex-presidente diz desconhecer detalhes da vida profissional da jornalista.
Fonte: Folha