Em entrevista à DW, Ciro Gomes afirma que Bolsonaro lidera uma “equipe de idiotas” e que não conseguirá terminar o mandato. Para ele, Congresso vem tendo papel importante de contenção perante presidente “irresponsável”.
Ciro diz não acreditar que Jair Bolsonaro consiga terminar o mandato. A avaliação dele se baseia em uma combinação de fatores: o histórico pós-redemocratização, o perfil heterogêneo dos grupos que compõem o governo e características pessoais do presidente.
Para o pedetista, ministro nos governos Itamar Franco e Lula e candidato a presidente em 2018, Bolsonaro é um desastre, sem preparo para lidar com as dificuldades do ato de governar em si, sobretudo no Brasil, e em meio a uma severa crise econômica.
Em entrevista à DW, Ciro faz um balanço da democracia brasileira após o primeiro ano do novo governo, avalia o cenário econômico e volta a apontar o “lulopetismo” como responsável pela ascensão de Bolsonaro.
“Ainda não é razoável dizer que Bolsonaro transgrediu o rito da institucionalidade democrática. Mas a qualidade da democracia brasileira tem se deteriorado muito”, afirma.
DW: Qual balanço você faz da democracia brasileira ao final do primeiro ano do governo Bolsonaro?
Ciro Gomes: A democracia brasileira nunca foi uma realidade profunda, no sentido verdadeiro do termo. Infelizmente, a história do Brasil é autoritária, de rupturas, com baixíssimo respeito à institucionalidade democrática, mesmo sob o ponto de vista liberal. Entretanto, da Constituição de 88 em diante, nós vínhamos nos esforçando para melhorar o conteúdo dessa democracia formal anunciada naquele momento. Mas, do Bolsonaro para cá, as coisas têm se deteriorado muito. Ainda não é razoável dizer que ele transgrediu o rito da institucionalidade democrática. Mas a qualidade da democracia brasileira tem se deteriorado muito.
São coisas práticas. Por exemplo, a escolha de pessoas por fundamentalismo religioso; a ideia de que uma agência de cinema vai segregar a autorização para o financiamento dependendo do mérito do roteiro; a ideia de invadir a autonomia das universidades sem qualquer discussão. São elementos que vão tateando o limite, que precisamos vigiar, de chegar na véspera da transgressão da própria ordem democrática. Felizmente, para o Brasil, o parlamento, que tem sido pouco respeitado na nossa tradição contemporânea, tem sido um fator muito importante de contenção do Jair Bolsonaro dentro dos limites da democracia.
Você teme por uma ruptura?
Não acho que temor deva ser a expressão. Nós temos que vigiar. Por exemplo, o Brasil experimentou um atentado com características de terrorismo, baseado nesse encontro macabro de fundamentalismo religioso e fascismo. Exigi que o ministro da Justiça entregue essas bestas fascistas à Justiça, sob pena de prevaricação. Na medida em que você tem uma prática que nunca existiu no Brasil após a redemocratização, isso só está acontecendo por conta do Bolsonaro.
Jair Bolsonaro conclui o mandato?
Eu tenho repetido um palpite meu de que ele não termina o governo. Em socorro desse palpite, tenho dois argumentos. Na nossa história moderna, só três presidentes terminaram o mandato: Fernando Henrique, Lula e Juscelino Kubitschek. Os três passaram por mal bocados e tentativas de golpe só para manter a regra, mas conseguiram escapar. Todos os outros tiveram seus mandatos interrompidos. A segunda razão é o desastre que é o Bolsonaro, pessoalmente, sem o mínimo preparo para arbitrar as gravíssimas contradições do ato de governar em si, sobretudo no Brasil, no epicentro da pior crise econômica da nossa história.
Ele loteou o governo entre o grupo do Paulo Guedes, que tem uma racionalidade estúpida, mas dá para conversar; um núcleo de militares, cada vez mais degradada com a saída dos melhores nomes, e esse núcleo de lunáticos que controla coisas importantes, como as relações exteriores, a política de direitos humanos e a educação, para ficar com três exemplos de onde está sediada a tragédia mais grave do governo Bolsonaro. Temos esse encontro da pior crise econômica da nossa história e a incapacidade absoluta do Bolsonaro de compreender os problemas e mediar os conflitos e soluções com um governo completamente heterogêneo. Não vejo como isso possa terminar.
O primeiro ano do governo Bolsonaro registrou um fenômeno inédito no presidencialismo brasileiro. Sem maioria e articulação forte no Congresso, a agenda econômica vem avançando sem dificuldades.
O Bolsonaro estabelece uma caricatura para um fenômeno que não é propriamente recente. Ele apenas desmascara e dá um conteúdo caricato ao deslocamento do poder real do mundo político para o baronato financeiro. Esse processo ocorria com um certo disfarce desde que o Fernando Henrique fez o Proer, Lula assinou a Carta aos Brasileiros e Dilma nomeou Joaquim Levy ministro da Fazenda. Com o Bolsonaro, isso tudo é despudoradamente caricato. Você tem um presidente da República que votou contra todas as propostas de reforma da Previdência, nos 30 anos em que esse debate aconteceu no Congresso. Ele tem ainda declarações violentas, como a de que Fernando Henrique merecia ser fuzilado por privatizar uma mineradora, como a Vale do Rio Doce, e falou com clareza contra a privatização do sistema Eletrobras. No entanto, está fazendo o oposto do que disse.
Ou seja, ele é um mero títere do poder real. Só que, desta vez, despudoradamente, o poder real está formalmente com a maioria do Congresso. É mínima a probabilidade de haver uma reforma tributária progressiva, uma necessidade óbvia e oportunidade que o Brasil tem, visto que sobretaxa patrimônio e renda de forma absolutamente exótica. É o único país, ao lado da Estônia, que não cobra tributos sobre lucros e dividendos empresariais. É um país que cobra 4% de imposto sobre grandes heranças, um absurdo completo. Nada disso será corrigido.
Em que bases tem se dado sua aproximação com o Rodrigo Maia? O programa econômico defendido por ele e o DEM não conflita com seu projeto?
Essa relação com o Rodrigo e o parlamento não é novidade. Lá atrás, eu percebi que a derrota do campo progressista brasileiro foi tão extensa e grave, que significou um três a um no parlamento. Nós não perdemos a presidência da república, mas o quórum qualificado, até para tomar iniciativa parlamentar. Nós ficamos com um para quatro, 25% do parlamento, somando todos os progressistas juntos. É uma derrota absolutamente inédita na história do Brasil. Quando isso aconteceu, eu percebi que era necessário estabelecer uma tentativa de aliança, dentro do ambiente parlamentar, para potencializar nossa força minoritária.
Nessa relação, consegui duas coisas. Uma já comentei: obrigar o Bolsonaro a jogar dentro dos limites da regra democrática, o que não é trivial. Enquanto o PT enganava o Freixo sobre sua candidatura à presidência da Câmara, eu dizia que iria apoiar o Rodrigo Maia, com as forças do PDT, porque obtive dele esse compromisso de obrigar o Bolsonaro a se comportar dentro da regra democrática. A segunda era conter danos dessa agenda. Não podia pedir a ele que mudasse de ideia, mas a garantia de espaços de contenções de danos, como participação nas comissões, de que nossos requerimentos e emendas tivessem sua consideração. E ele cumpriu religiosamente o acordado lá de trás. Então, isso se aprofundou. A confiança pessoal virou institucional, orgânica, e estamos conversando cada vez mais.
Evidentemente, eu respeito muito a ideia dele, e não concordo de forma nenhuma. Mas ele tem a mesma relação conosco do PDT, tem profundo respeito por nós mas discorda das nossas ideias. Até aqui, ele é maioria. Nós, minoria. Portanto, a probabilidade de uma aliança eleitoral no futuro é mínima. É claro que todo mundo especula, e eu não tenho nenhuma razão para dizer que não ficaria honrado com uma aliança dessas. Mas, para que aconteça, teríamos que aprofundar um debate programático que partiria de campos muito distintos. Não é uma distinção trivial.
A agenda ambiental nunca teve tanta importância como agora no Brasil. O projeto desenvolvimentista que você defende para o Brasil não conflita com esses interesses?
Está escrito no programa, e minha ideia é que a questão ambiental perpassa toda a compreensão de desenvolvimento do país. Mas não posso concordar, por exemplo, com uma tese interessante e respeitável na Europa, de que o desenvolvimento, pelo modo como está posto, tem que ser interrompido, senão o planeta irá morrer. Ora, do ponto de vista de um europeu, eu compreendo isso. Eu respeito profundamente a Greta Thunberg, mas ela tem essa premissa. Para nós, da periferia, uma sociedade que tem mais de 15 milhões de pessoas na miséria absoluta; 38,8 milhões na informalidade, desprotegidos de qualquer regra no mercado de trabalho contemporâneo e no futuro previdenciário; 14 milhões de desempregados, não podemos nos dar ao luxo de interromper o desenvolvimento. Precisamos crescer a taxas superiores aos ganhos de produtividade e ao crescimento demográfico, que ainda é, no Brasil, superior a 1%. Precisamos gerar 2 milhões de empregos por ano só para o fluxo, sem pensar no estoque, além da miséria e falta de infraestrutura.
Agora, evidentemente, esse desenvolvimento não precisa ser feito na base da selvageria dos anos 1970. Evidentemente, se o Brasil partir para o zoneamento econômico-ecológico do território, estabelecer regramentos de sustentabilidade para todas as atividades, além de prêmios e punições progressivos para adequar as tradições produtivas do Brasil à sustentabilidade ambiental, seremos uma nação exemplo para o mundo, como já vínhamos sendo. Quem está ferrando o nome do Brasil é o Bolsonaro e essa equipe de idiotas que ele tem, passando pelo ministro do Meio Ambiente, um grande pilantra. Esses canalhas estão ferrando o Brasil.
Como ministro da Integração, coordenei com a Marina Silva, minha colega ministra, a resposta a uma grande queimada na Amazônia nos anos de 2004 e 2005. Conseguimos cooperação internacional e um êxito extraordinário, de maneira que aquele problema virou um ato de muito respeito ao Brasil, porque, diante do problema, o presidente tomou providências, os ministros caíram em campo e foram ao território. O Bolsonaro nem sequer foi ao território. Começa a inventar coisas, dizer que ONGs tacaram fogo, aí puxa um artista de Hollywood para incriminar. O Bolsonaro é um irresponsável, um grande canalha.
O agronegócio precisa ocupar um papel tão importante na economia brasileira?
Sem nenhuma dúvida. Quando o Brasil cresceu 2%, ainda em 2014, o déficit na balança comercial de manufaturados teve um déficit de 124 bilhões de dólares. Quem paga esta conta, basicamente, são as commodities, compostas pelos vetores mineração — petróleo e minério de ferro — e agronegócio. Subtrair isso torna impagável o balanço de pagamentos do país. Agora, em nenhuma hipótese, deve haver qualquer tipo de tolerância com o abuso, nem ambiental, nem na questão do trabalho. Como eu conheço muito bem o Brasil, o lado moderno e exportador do setor já está todo compenetrado nisso.
Quem pede o oposto é uma massa de migrantes que era pobre na geração anterior, ou ainda nesta geração, migrou para a Amazônia estimulado pela propaganda governamental, em cima de valores estúpidos, e agora não está entendendo nada. É uma turma que só sabe derrubar mata, porque há 30 anos, no Brasil, quando o governo brasileiro chamava o povo do Nordeste e, em especial, do Rio Grande do Sul para a Amazônia, a condição de titularidade da terra era demonstrar que desmatou. De repente, isso está criminalizado, e ele vê comunismo em qualquer lugar. O camarada largou a família, os laços sociais, empenhou-se na mata das Amazônia, já pegou seis malárias nas costas e não entende esse negócio de comunidade indígena.
Para eles, os indígenas são preguiçosos. Não compreendem que é uma outra cultura, o indígena não tem a lógica de acumulação capitalista judaico-cristã, não entendem nada disso. Tratam de corromper os índios com bebida, outras coisas, e falam mal. O Bolsonaro tem uma frase dizendo que a cavalaria americana cumpriu a tarefa dela, enquanto a brasileira não cumpriu. Ele diz isso, com todo o despudor. Você vai esperar que essa gente ignorante, que era miserável, de repente passe a respeitar indígena e a floresta, se o presidente da República diz que não vai demarcar um centímetro de terra indígena? O camarada tem um filho que quer crescer ali também, ele vai derrubar a mata. Ele só sabe fazer isso, nunca ninguém o ensinou a fazer outra coisa.
Há um caminho para os setores progressistas se reaproximarem da população?
Eu cultivo muito a humildade. Esta é uma tarefa muito difícil, porque demanda conteúdo e meio. Temos um gravíssimo problema de conteúdo no campo progressista brasileiro, porque o lulopetismo corrompido aceitou o ideário neoliberal e imaginou o caminho de humanizá-lo de forma clientelista, com uma rede de proteção social baseada em políticas compensatórias, mas garantindo o essencial do modelo. E monopolizou a adjetivação “de esquerda”. Esse problema é grave, porque a velha esquerda morreu, e não se trata de um fenômeno brasileiro.
Nas eleições francesas, houve 13 candidatos, o que já é pouco usual, e os cinco mais votados se apresentaram como candidatos de movimentos. O Macrón tinha sido ministro da Fazenda do governo socialista do Hollande, apresenta-se como candidato de movimento e vai para uma prática completamente reacionária. É uma tragédia da qual a esquerda tradicional europeia está se reinventando. A portuguesa já conseguiu uma coisa mais prática, a espanhola está tentando algumas novidades, a francesa está em convulsão, debatendo. Nos EUA, há uma dissintonia absoluta dentro dos democratas. O Bernie Sanders está estressando todo o ideário, por um campo mais progressista, mas não parece ser um candidato que o sistema americano engula, por excesso de esquerdismo.
É um problema de conteúdo?
O colapso do conteúdo é a primeira camada da crise no Brasil. Depois, há um problema de meio. A população mais simples só toma informação que for repetida na televisão, em horário nobre. Não adianta nem sequer dizer que cumpriu o protocolo da notícia. Se não repetir de forma novelizada, o trabalhador que chega em casa esfolado, humilhado do desemprego, não toma notícia. O mesmo acontece com a pequena classe média, que quer se distrair. A Folha de São Paulo tem 10% da circulação que já teve, virou um apêndice do grande negócio do UOL, que é financeiro também hoje. Estas são as dificuldades.
É preciso construir conteúdo, e estou profundamente dedicado a isso, com um livro que já está na editora. É uma proposta concreta, audaciosa e algo irrealista. Mas sou um homem prático e proponho caminhos para realizar. Só que temos um protocolo democrático: como vamos exercitar a democracia para defender os interesses do cidadão que acaba reproduzindo os interesses hostis a ele próprio, como o fim da previdência social dos pobres, visto que jamais vão alcançar 65 anos de idade com 40 de contribuição na demografia brasileira. E ele não quebrou uma vitrine, enquanto os franceses estão nas ruas para defender coisas muito menos centrais do que se trata aqui. É um sinal dos tempos, e este é o desafio. Não sou candidato porque é fácil, mas necessário.
Fonte: IG
Créditos: IG