Aline Benevides, de São Paulo, é mãe de duas crianças com deficiência visual: Isac, de 11 anos, e Levi, de 5. Até 2020, os meninos estudavam em uma escola filantrópica focada em alunos cegos. Neste ano, a mãe decidiu transferi-los para um colégio público comum:
“Eles estavam em uma bolha, convivendo com poucas crianças sem deficiência”, conta.
“A sala de aula regular traz benefícios para eles, que não se sentem mais excluídos. Os colegas também aprendem a não ter preconceito. Não entendo por que ainda insistem nessa ditadura de separar [os alunos com deficiência]. As falas desse ministro têm feito um buraco no meu coração.”
Aline refere-se a Milton Ribeiro, titular do Ministério da Educação (MEC). Nas últimas semanas, ele deu as seguintes declarações, criticando o que chama de “inclusivismo”:
“Nós temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência. O que o nosso governo fez: em vez de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo ‘inclusivismo’, nós estamos criando salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam.” – em entrevista à TV Brasil (9 de agosto)
“Dentro desses 12% temos algumas crianças que têm problemas de visão, elas não podem estar na mesma classe. (…) Imagina uma professora de geografia [dizendo]: ‘aqui é o rio Amazonas’ para uma criança que tem deficiência visual (…)”. – afirmou o ministro.” – à rádio Jovem Pan (23 de agosto)
Especialistas ouvidos pelo G1 rebatem as afirmações do ministro: eles defendem que é possível, sim, garantir a aprendizagem de crianças com deficiência nas salas de aula comuns.
“É uma questão debatida longamente no Brasil e no mundo. A inclusão é fundamental e traz benefícios a todos”, explica Eliana Cunha Lima, coordenadora de educação inclusiva da Fundação Dorina Nowill.
“Não faz sentido focar as políticas públicas em escolas especiais, que são algo do passado. Precisamos investir em formação de professores, adaptação de materiais e acessibilidade.”
Por lei, todas as escolas comuns são obrigadas a aceitar a matrícula de alunos com deficiência. O Censo já reflete essa tendência: em 2005, 77% deles estavam ainda em classes ou escolas especiais. Na última edição, de 2020, o índice caiu para 13,5% (a maior parte – 86,5% – passou a estudar no mesmo espaço que os demais alunos).
Mas atenção: a inclusão vai além da presença física da criança na sala de aula, explicam os educadores. É preciso garantir que ela esteja socializando e efetivamente aprendendo.
Aí é que está o desafio – proporcionar adaptações de conteúdos, reformular materiais didáticos, preparar professores, reformar o prédio (incluir rampas, por exemplo) e pensar em novas formas de avaliação.
“A escola precisa dar conta da criança que existe, não da criança que ela idealiza”, afirma Claudia Werneck, jornalista e fundadora da Escola de Gente.
“Tenho a impressão de que o ministro acha que podemos adiar o inadiável, como se fôssemos congelar todos os alunos com deficiência, até que houvesse uma solução perfeita para eles. Isso gera exclusão, sofrimento e desigualdade.”
Quais adaptações podem ser feitas a alunos com deficiência visual?
Segundo o Censo Escolar 2020, dos 83.643 alunos com cegueira ou baixa visão matriculados na educação básica:
95% estão em escolas comuns,
e apenas 5% em classes exclusivas.
Mas como garantir que um aluno que não enxergue (ou enxergue muito pouco) aprenda os conteúdos?
É possível utilizar o braille (sistema de escrita e leitura tátil), por exemplo, e ensiná-lo até com objetos de baixo custo, como caixas de ovo (veja imagem abaixo). Existem ainda materiais ampliados ou em alto-relevo e softwares de leitura.
“Na situação que o ministro citou, do rio Amazonas, o professor poderia usar um globo terrestre com relevo, para que o aluno pudesse perceber, pelo tato, a localização. Ou então pegar um mapa e colocar um barbante contornando os limites entre os estados. Qualquer recurso tátil auxilia”, diz Lima, da Fundação Dorina Nowill. “Dá para aprender a hidrografia inteira do país.”
Luiza Corrêa, coordenadora do Instituto Rodrigo Mendes, dá ainda outra sugestão: o docente caprichar na descrição do rio ao falar com as crianças. “Isso traz benefícios a todos. Dando mais detalhes oralmente ou usando maquetes, as pessoas sem deficiência também terão mais facilidade de entender as características do rio.”
Mudanças graduais
Quando Aline mudou-se para Iaras, no interior de São Paulo, e decidiu matricular os filhos em uma escola comum, enfrentou desafios. Nunca uma criança cega havia estudado naquela instituição.
“Falaram que iam buscar o que fosse necessário para adaptar tudo aos meus filhos. Imprimiram as apostilas em braille, adaptaram os materiais e mandaram vídeos com descrição em áudio para eles acompanharem as aulas na pandemia, em casa. Não foi fácil, claro, estão buscando conhecimento. Mas me sinto acolhida”, diz Aline.
Mais um exemplo: a dona de casa Patrícia Ferreira também acompanhou o processo de transformação do colégio municipal onde sua filha mais velha estuda, em São Paulo.
Mariane Victoria, de 13 anos, tem baixa visão (20% da capacidade de enxergar em um dos olhos e nenhuma no outro).
“Foi complicado, precisei ‘causar’ um pouco, mas conseguimos que respeitassem os direitos dela. Tudo foi melhorando: a escola faz atividades ampliadas, e tem uma professora só de inclusão, que dá ensinamentos extras a ela [no contraturno escolar]”, conta.
“A Mari aprendeu a ler e escrever; tem muitos amigos. Sei que é difícil [o professor] dar conta de uma sala com 40 alunos, sendo um deles com deficiência. Mas o ministro precisa pensar que todos vão se desenvolver na inclusão”, diz Ferreira.
“Quando acabar a escola, minha filha não vai encontrar só gente com deficiência visual: vai ter pessoa de todo jeito no mundo. Ela não pode viver isolada para só depois entrar na sociedade.”
Necessidade de investimentos
Corrêa, do Instituto Rodrigo Mendes, reforça que, de fato, “o sistema público tem defasagens que precisam ser superadas”.
“Mas a solução é investir para melhorar, em vez de investir na exclusão: direcionar recursos para acessibilidade comunicacional e arquitetônica, formação de professores e elaboração de material”, afirma.
A mesma percepção é descrita por Lara Santana, professora de uma escola municipal de ensino fundamental na capital paulista. Aos 35 anos, ela é mestre em estudos linguísticos e literários em inglês.
“Tenho baixa visão e dou aula para alunos com e sem deficiência. Não dá para romantizar: existem dificuldades, claro – faltam adaptações de espaços, nem todo mundo é parceiro na hora do trabalho -, mas é melhor do que a total exclusão”, afirma.
“A inclusão é desafiadora e benéfica. A gente precisa quebrar barreiras e exigir mais investimentos.”
Ela conta que não tem acesso a recursos que possibilitem imprimir banners com imagens em tamanhos grandes, por exemplo. Mas tenta encontrar saídas.
“Aprendi inglês de um jeito diferente, baseado na oralidade, e também ensino assim. Levo mais música; trabalho a pronúncia e foco na fala”, conta. “O retorno é positivo; os alunos e os pais gostam muito. Perder isso seria um total retrocesso.”
Nova política de educação especial
As declarações recentes do ministro Milton Ribeiro sobre alunos com deficiência não foram a primeira polêmica sobre o tema na gestão Bolsonaro.
Em outubro de 2020, o governo federal apresentou a Política Nacional de Educação Especial, cujo objetivo era incentivar que municípios e estados oferecessem mais vagas em instituições exclusivas a pessoas com necessidades especiais.
O decreto foi suspenso pelo ministro Dias Toffoli em dezembro, após especialistas considerarem que o documento era discriminatório e contrário à inclusão.
O governo argumenta que a nova política não gera segregação. O assunto voltou a ser debatido nesta semana, em audiência pública no STF. Ainda não houve decisão final.
Fonte: G1
Créditos: G1