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Aparência legal de financiamento de campanha pode esconder propinas - Por César Dario Mariano da Silva

Doação eleitoral legal pode ser criminalizada? SIM

 

Nesta semana ocorreu o julgamento do inquérito nº 3.982 no Supremo Tribunal Federal, cujo resultado norteará diversas ações penais em trâmite no próprio Pretório Excelso e em outras instâncias do Poder Judiciário.

Discutiu-se se doações eleitorais formalmente declaradas à Justiça Eleitoral podem constituir crime de lavagem de dinheiro quando travestidas de legalidade, mas frutos de propina. Pelo apertado placar de 3 votos a 2, foi reconhecida a ocorrência do crime de lavagem de dinheiro na hipótese.

O tribunal tomou a decisão correta. Não há como confundir lavagem de dinheiro com a infração penal antecedente, no caso corrupção (ativa e passiva). Na lavagem de dinheiro, dá-se aparência de legalidade a bem, direito ou valor que, na realidade, é proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal (crime ou contravenção).

Por meio de artifícios, atualmente muito bem empregados, procura-se legalizar e colocar em circulação algo que é ilegal, produto ou proveito de infração penal.

Aquele que efetua doações eleitorais aparentemente legais com o propósito de que o agente público que a receba interceda em seu favor pratica, juntamente com o funcionário público, crime de corrupção (ativa e passiva) e lavagem de dinheiro.

O corruptor faz a doação. O corrupto a recebe e realiza a necessária declaração à Justiça Eleitoral. O dinheiro, que é sujo (produto de corrupção), passa a ser empregado nas despesas de campanha do corrupto, dando-lhe aparência de legalidade.

Além dos crimes de corrupção (ativa e passiva) praticados por quem deu a vantagem indevida e por quem a recebeu, subsiste íntegro o crime de lavagem de dinheiro, que é autônomo em relação ao delito antecedente.

Na corrupção há, em regra, acordo entre o corruptor e o corrupto. O corruptor, ao prometer, oferecer ou dar a vantagem indevida, o faz para que o corrupto o favoreça em ato de seu ofício. O corrupto solicita ou recebe a vantagem indevida em razão de suas funções. O intuito de quem dá a vantagem e de quem a solicita ou recebe é o mesmo: beneficiar-se ilegalmente.

Ocorre que essa vantagem indevida dada ao agente público precisa ser legalizada para que possa ser empregada livremente. O instrumento criado para isso é a engenhosa doação eleitoral fictícia, que caracteriza a dissimulação constante do tipo penal de lavagem de dinheiro.

Por isso, ouvimos sempre a mesma justificativa de alguns políticos acusados por delatores: a doação recebida é legal, tendo sido declarada à Justiça Eleitoral.

Essa assertiva não procede. A forma é legal, mas não o seu conteúdo. Não se trata de doação, mas de propina disfarçada. O dinheiro, que é produto de crime, teve a origem dissimulada/ocultada e foi colocado em circulação para o pagamento de campanha eleitoral.

Há dois crimes em concurso material. O antecedente (corrupção) e a lavagem de dinheiro, cometidos em momentos distintos e com condutas próprias.

Com efeito, muito embora realizada a prestação de contas dos valores recebidos, ocorreu, uma vez que a origem do dinheiro é criminosa, sua dissimulação/ocultação e consequente crime de lavagem de dinheiro, que não se confunde com o delito de corrupção, que é seu antecedente, não havendo entre eles relação de meio e fim.

 

 

CÉSAR DARIO MARIANO DA SILVA, mestre em direito das relações sociais pela PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é promotor de Justiça em São Paulo

Fonte: Folha de S. Paulo