Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos ministros e pelos principais chefes militares.
Nesse encontro, o governo federal havia sacramentado as medidas do decreto. Quatro anos e oito meses depois do golpe, começava o período mais duro da ditadura. O AI-5 conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos.
Também poderia suspender direitos políticos e demitir ou aposentar servidores públicos. Suspendia-se ainda a garantia de habeas corpus em casos como crimes políticos.
Nenhuma dessas medidas estava sujeita à apreciação da Justiça. “Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime”, diz o historiador José Murilo de Carvalho. “O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, cujas medidas afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia.”
Documentos produzidos pelos militares e relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostram que o endurecimento promovido pelo AI-5 atingiu pelo menos 1.390 brasileiros até 31 de dezembro de 1970 em diversos setores e diferentes escalões da vida pública no país.
De três ministros do Supremo Tribunal Federal (Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), aposentados à força, a dois auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho (Gumercindo Libório Morais e José Zacarias da Silva), que foram demitidos sumariamente.
De cinco senadores (Aarão Steinbruch, João Abrahão Sobrinho, Arthur Virgílio Filho, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira), cujos mandatos foram cassados, a um encanador demitido pelo Exército (Aloisio Rocha).
Em relação aos documentos militares, a Folha compilou os dados que constam de papéis guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, e produzidos pelo extinto CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de assessoramento direto do presidente da, e pelo Ministério da Aeronáutica.
Ao longo desse período, foram atingidas 80 mulheres, incluindo professoras, advogadas, deputadas, militantes da esquerda armada e até duas militares das Forças Armadas. Elas representam 6% do total.
Os efeitos do ato envolvem diversas patentes, de soldados do Exército a um almirante da Marinha (Ernesto de Mello Baptista), transferido de unidade. Além dos ministros do STF, outros 27 magistrados foram atingidos, incluindo oito da área trabalhista e o ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Pery Constant Bevilacqua (1899-1990), aposentado à força por ser considerado adversário do governo.
Em 1976, o ex-ministro disse a escritores que o entrevistaram: “O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e comprometeu os ideais do movimento de 31 de março [de 1964]. Os fatos a que nos referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução”.
Em janeiro de 1969, a jornalista e dona do “Correio da Manhã”, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), teve os direitos políticos suspensos e foi presa. Além dela, que estava à frente de um jornal crítico da ditadura desde o golpe militar, em 1964, seis jornalistas foram afetados nos dois primeiros anos da vigência do AI-5.
Também em 1969, em abril, os direitos políticos de um dos mais importantes jornalistas e romancistas do país Antonio Callado (1917-1997) foram suspensos. O autor de “Quarup” também acabou sendo preso -a cassação foi revogada posteriormente.
O poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) foi aposentado à força no Itamaraty em abril de 1969, no mesmo dia em que foi punido, com a aposentadoria na USP, Caio Prado Júnior (1907-1990), político, historiador e considerado um dos principais intelectuais do país.
Os expurgos ocorriam em ondas, após decisões sumárias tomadas pelo CSN a partir de processos administrativos que não abriam espaço para defesa e duravam poucos dias ou semanas.
Para provar que a pessoa merecia ser punida, o CSN se valia de todo tipo de informação produzida pela repressão, como informes confidenciais produzidos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), peça da máquina de espionagem criada logo após o golpe de 1964.
Os informes eram feitos sem o conhecimento da pessoa sob investigação e podiam ser alimentados com meros boatos não confirmados, distribuídos por adversários do político.
As listas dos punidos eram publicadas no Diário Oficial e anunciadas pela imprensa. Em 15 divulgações de dezembro de 1968 a abril de 1969, 452 pessoas foram atingidas de alguma forma, incluindo 93 deputados federais em exercício do mandato. A maioria teve os direitos políticos suspensos por dez anos, o que implicava a perda imediata do cargo.
“Na fase inicial do AI-5, havia muito improviso na organização do sistema repressivo. Era um trabalho por espasmos”, diz à Folha David Lerer, à época deputado federal do MDB paulista. O nome de Lerer, 81, apareceu na primeira lista de cassações após a decretação do ato.
O AI-5 também abriu caminho para o recrudescimento da repressão militar contra opositores à ditadura e integrantes dos grupos de esquerda que haviam adotado o caminho da guerrilha.
Sete meses depois do ato, em julho de 1969, o 2º Exército e o governo de São Paulo criaram, com apoio financeiro de empresas privadas, a Oban (Operação Bandeirante), unidade formada por policiais civis e militares para perseguir militantes da esquerda.
A ditadura ainda estava abalada pelo ataque, em janeiro, liderado pelo capitão Carlos Lamarca (1937-1971) ao quartel de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo, de onde levou armas e munições.
No ano seguinte, em outubro de 1970, o modelo criado pela Oban foi difundido pelo interior do país, mas agora sob o guarda-chuva do próprio Exército, com a criação de unidades do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que deu sequência à caçada aos integrantes da esquerda armada, com muitos episódios de tortura e execução de presos já dominados.
Da edição do AI-5 a dezembro de 1970, ao menos 44 militantes de esquerda foram mortos, incluindo um dos nomes mais procurados pelos militares, Carlos Marighella (1911-1969), abatido a tiros em São Paulo, e outros 11 foram presos e dados como desaparecidos.
O total de 55 em dois anos corresponde a 13% de todos os mortos e desaparecidos nos 21 anos de ditadura militar, segundo o número da Comissão Nacional da Verdade.
Como se sabe, o ano de 1968 foi um período marcado pela contestação política e comportamental em todo o mundo. No Brasil, a resistência civil também exibia um fôlego crescente.
O enterro do estudante Edson Luís, assassinado por policiais no Rio, atraiu dezenas de milhares de pessoas a um protesto contra o regime militar, em março. Três meses depois, ocorreu a manifestação contra o governo e a violência policial, que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil.
Os movimentos estudantis e operários ganhavam força ao longo do ano.
No campo oposto, a chamada linha dura (os militares mais radicais) defendia medidas enérgicas para fazer frente ao que via como uma “guerra revolucionária”.
“Havia em 1968 um movimento gigantesco de contestação nas ruas. Era um ambiente de grande tensão”, diz Delfim Netto, à época ministro da Fazenda do governo Costa e Silva. Entre os 24 membros do Conselho de Segurança Nacional que participaram da reunião no Rio, Delfim, 90, é o único que está vivo.
O ex-ministro critica a linha dura (“extremamente nacionalistas, de uma visão muito curta”). No entanto, ele pondera que a situação do país naquele momento era “bastante complicada”.
Para o ex-deputado David Lerer, a tensão poderia ter sido contornada. “O limiar do ponto de ebulição dos militares era extremamente baixo. Ferviam com qualquer coisa.”
De qualquer modo, o atrito entre o Planalto e os parlamentares da oposição cresceu em 12 de dezembro com a decisão da Câmara de negar a licença pedida pelo governo para processar o deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009).
Pouco mais de três meses antes, em discurso na Câmara em 3 de setembro, Moreira Alves (MDB-RJ) havia protestado contra a violência dirigida a estudantes e a outros ativistas da oposição e convocado a sociedade a boicotar os desfiles militares de Sete de Setembro. “Quando o Exército deixará de ser um valhacouto de torturadores?”, indagou.
Para Delfim, “foi uma provocação inteiramente despropositada”. O discurso “caiu muito mal entre os militares. Foi a gota d”água para o endurecimento do regime”, recorda-se David Lerer, colega de partido e amigo de Moreira Alves.
Em uma sessão marcada pela fala do deputado Mário Covas (1930-2001) em defesa da autonomia do Poder Legislativo, o pedido pela punição de Moreira Alves foi rejeitado por 216 votos a 141.
Era a pior derrota política do regime militar desde a tomada do poder em 1964. Mais de 90 parlamentares do partido governista, a Arena, votaram a favor de Moreira Alves.
No plenário, a vitória foi celebrada ao som do Hino Nacional e com vivas à democracia. Estava criada uma crise institucional, opondo o Congresso às Forças Armadas.
No dia seguinte, uma sexta-feira 13, o presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) convocou a reunião do Conselho de Segurança Nacional. Surgiram poucas objeções, mesmo que veladas, às medidas propostas pelo ato.
“O que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é […] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura”, afirmou o vice-presidente, Pedro Aleixo, o único integrante da mesa a revelar uma preocupação clara com as novas propostas.
É preciso “acabar com estas situações que podem levar o país não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos”, declarou Augusto Rademaker, ministro da Marinha.
Delfim, que também apoiou enfaticamente as medidas durante a reunião do conselho, diz não se arrepender da posição tomada 50 anos atrás.
“Quando o futuro virou passado, você adquire uma outra visão. Com a situação que eu via naquele instante e com o conhecimento que tinha, eu repetiria o fato”, afirma Delfim, colunista da Folha.
“Mais tarde, eu assinei a Constituição de 1988, com todos os direitos do artigo 7º [abrange direitos dos trabalhadores urbanos e rurais].”
No texto do AI-5, Costa e Silva alegava que seu governo resolvera editar o decreto em concordância com os propósitos da “revolução brasileira de 31 de março de 1964”, que visavam dar ao país “autêntica ordem democrática”.
Era imperiosa, dizia, a adoção de medidas que impedissem que tal ordem e a tranquilidade fossem comprometidas por processos subversivos.
No livro “A Ditadura Envergonhada”, primeiro dos cinco volumes de série sobre o governo militar, o jornalista Elio Gaspari assim resume o encontro no Laranjeiras:
“Durante a reunião falou-se 19 vezes nas virtudes da democracia, e 13 vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e 18 dias.”
O Congresso Nacional foi fechado e só reabriu em 21 de outubro de 1969.
Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Folha de São Paulo