Iracema não sabe dizer ao certo em que ano nasceu. Ainda hoje, com idade estimada em 65 anos, ela luta para recuperar sua história, que foi interrompida no início da ditadura militar no Brasil. Em 1964, Iracema tinha cerca de 11 anos quando foi presa e torturada junto com sua mãe, uma professora militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Machucada, Iracema foi abandonada sozinha em uma praça no Recife, em Pernambuco. Nunca mais viu sua mãe, que se tornou uma desaparecida política. Sem família nem documentos, até a idade adulta sua vida foi itinerante e “sem título”, como ela própria define.
Por muito tempo, Iracema não se lembrava do próprio sobrenome e tinha apenas uma ideia nebulosa dos locais onde viveu antes de ser levada para o Rio de Janeiro por um casal de vizinhos. Mas a memória da tortura que sofreu nos porões do Doi-Codi no Recife permanece clara e traumática até hoje.
“Cinquenta e cinco anos é pouco para eu esquecer”, diz muito emocionada durante entrevista concedida ao G1 em apartamento em São Paulo, onde mora atualmente com um dos seus seis filhos.
A história de Iracema é um dos 19 casos revelados por Eduardo Reina no livro “Cativeiro sem Fim” (Editora Alameda), que foi lançado na última terça-feira (2). Em um trabalho de investigação de 20 anos, o jornalista conseguiu identificar relatos até então desconhecidos de crianças e adolescentes que foram sequestrados, torturados e alguns adotados ilegalmente por famílias de militares.
Iracema conta que ela e sua mãe foram abordadas na rua e jogadas em um carro escuro. Um dos militares bateu em seu rosto, o que provocou uma lesão em um dos olhos que comprometeu, anos depois, 80% de sua visão.
“Ele me deu um chute e uma pancada no rosto e eu fiquei atordoada. Entramos no carro. Não sei quanto tempo rodou, só sei que quando eu vim voltar a mim, estava com o olho muito inchado, doendo muito. Tinha sangue. E eu estava sem roupa, só com a roupa debaixo. E tomando choque, porque estava na água”, diz.
Na penumbra, ela também pôde ouvir os gritos de sua mãe. “Tinha uma luz assim, uma brecha para outro lugar. Eu ouvi os gritos. Eu vi um objeto que hoje eu digo que talvez fosse um alicate. Eu vi quando arrancou unhas”.
Depois, ela afirma que viu a silhueta de um homem que ordenou que ela fosse levada. “Chegou uma pessoa com umas botinas. Tinha uma luz muito forte, tipo um abajur. Eu só via a silhueta de uma pessoa alta que disse assim: ‘Mas o que vocês fizeram? […] Vocês têm que pegar ela, vestir com qualquer coisa, colocar no carro. Rode bastante a cidade e coloque ela em um lugar de fácil acesso’”.
Segundo o relato de Iracema, ela foi então colocada machucada dentro de um saco de estopa com um mau cheiro. Abandonada na Praça do Derby, no bairro de Boa Vista, ela foi encontrada por um casal que a acolheu.
“Essa não é uma história que eu inventei. Essa é a história que me puseram dentro. Aí agora vem: ‘vamos festejar a ditadura militar’. Eu estou festejando a vida. E ter a coragem de dizer que nunca mais ninguém vai fazer tortura comigo nem com ninguém perto de mim”, diz Iracema, se referindo ao fato de o presidente Jair Bolsonaro (PSL) ter determinado ‘comemorações devidas’ na data que marcou 55 anos do golpe.
Nesta quinta-feira (4), o Itamaraty enviou telegrama à ONU (Organização das Nações Unidas) afirmando que “não houve golpe de Estado” em 31 de março de 1964 e que os 21 anos de governos militares foram necessários “para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista”.
Em busca do sobrenome
Depois de ser achada na praça, Iracema foi entregue a um casal que foi responsável por uma longa viagem de fuga até o Rio de Janeiro. “Eu fui criada assim como te falei. Na casa de um, na casa de outro. Tem um monte de gente que eram meus padrinhos. Eu passei pela mão de várias famílias, mas nenhuma era a minha família”, diz.
Ainda adolescente, em uma dessas casas por onde passou ela conheceu um homem com quem teve dois filhos. Sem nenhum documento, trabalhou como doméstica e em um armazém. Com o fim do relacionamento, ela decidiu ir para São Paulo.
Somente em 1972, com aproximadamente 19 anos, é que conseguiu emitir no cartório de Francisco Morato sua primeira certidão de nascimento, que a permitiu registrar também os seus filhos. Como só sabia o primeiro nome da mãe, usou o sobrenome do casal que a levou para o Rio, sendo registrada como Iracema Alexandre de Souza.
Documento mostra a foto da professora Lúcia Emília de Carvalho Araújo, que foi fichada pelo DOPS por exercer “atividade subversiva” durante a ditadura — Foto: Reprodução/Eduardo Reina
Aos 53 anos, após o nascimento dos seus outros 4 filhos, Iracema decidiu voltar ao Recife para buscar suas origens. Encontrou uma de suas “madrinhas”, que a ajudou a descobrir quem foi sua mãe. Lúcia Emília de Carvalho Araújo era professora e atuava junto às Ligas Camponesas em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, dando aulas para alunos do ensino fundamental, filhos dos lavradores e moradores da periferia.
Lúcia foi presa ao menos cinco vezes entre 1964 e 1969, acusada de “exercer atividades subversivas”. Seu último registro de prisão foi em meados de 1969, na sede do Doi-Codi de Recife, de onde desapareceu. Nesse período, Iracema já não estava junto à mãe.
No início dos anos 2000, Iracema entrou com uma ação de Retificação de Registro Civil e finalmente conseguiu alterar seu nome para Iracema de Carvalho de Araújo, com a data de nascimento constando como 2 de julho de 1953.
“Eu fiquei sabendo da história dela por causa de algumas pessoas da área de direitos humanos. O caso chegou para mim como sendo a primeira pessoa em Pernambuco que teve uma ação de retificação de nome realizada”, diz Eduardo Reina, que procurou por Iracema durante anos.
Antes de conseguir falar com ela pessoalmente, o jornalista já tinha tido acesso a vários documentos que constavam no processo do caso na Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça.
“Essa conversa com a Iracema durou umas cinco horas e foi muito difícil. Tanto que quando eu saí de lá, eu não aguentei, eu despenquei. E não só a situação da Iracema, mas a situação das outras pessoas que também foram vítimas desse crime. Imagina a pessoa viver uma vida inteira e não saber quem ela é, quem são os pais, quando ela nasceu”, afirma Reina.
Livro faz surgir novos relatos
Pesquisador da ditadura militar há duas décadas, Eduardo Reina afirma que resolveu investigar especificamente os casos de sequestro de crianças porque acredita que houve um grande esforço para que eles fossem escondidos, já que são crimes hediondos que não prescrevem.
“Eu considero essa questão do sequestro dos filhos de militantes políticos o segredo dentro do segredo. Porque a gente não conhece toda a história da ditadura aqui no Brasil, só uma face dela”, afirma.
No livro “Cativeiro sem fim” (Editora Alameda), que foi lançado em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, ele identificou 19 casos de sequestro e/ou apropriações de bebês, crianças e adolescentes. Muitos foram adotados ilegalmente por famílias de militares.
“Na argentina, os militares sequestraram 500 filhos de militantes políticos. Esse crime também aconteceu no Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia. As forças militares na América Latina no período de ditadura sempre agiram em conjunto, de modo similar. Aqui no Brasil, a gente nunca falou disso. Essas pessoas foram ocultadas, escondidas e agora está sendo quebrada essa barreira”, diz.
Dos casos levantados por Reina, 11 são ligados à guerrilha do Araguaia, movimento de oposição ao regime que ocorreu entre o final da década de 60 e 1974 na Amazônia. Há, inclusive, o relato de um bebê que foi sequestrado por engano ao ser confundido com o filho de um guerrilheiro.
Reina afirma que procurou as Forças Armadas, o Exército e Aeronáutica, que não quiseram se manifestar sobre os casos.
Durante a semana de divulgação até o lançamento do livro, na última terça-feira (2), o jornalista afirma que outras pessoas já vieram procura-lo com documentos para relatar histórias parecidas.
“Já recebi 19 novas histórias. Ou seja, dobrou o número dos relatos que o livro traz. Mas esses casos ainda precisam ser apurados, checados. Tomara que o livro seja um ponto de partida para jogar luz e quebrar essa barreira da invisibilidade”, diz.
Fonte: G1
Créditos: G1