Se antes era um absurdo ler o diário dos filhos, hoje, especialmente com o mundo digital, muitos pais não sabem até que ponto devem respeitar a privacidade deles. E, nessa tentativa de superproteger e de cuidar a qualquer custo, alguns têm abusado. É o que observa a psicóloga clínica Lídia S. Rocha de Macedo, que fez mestrado, doutorado e pós-doutorado investigando o tema da comunicação familiar, no Instituto de Psicologia da UFRGS. Ela observa que aumentou o número de mães e pais invadindo sistematicamente a vida dos filhos por todos os meios. “O que mais me impressionou foi o monitoramento pelo WhatsApp, que me pareceu funcionar como uma tornozeleira eletrônica.” Leia a entrevista completa com Lídia:
Muitos pais não sabem até onde devem deixar os filhos terem privacidade. Até quando se pode “bisbilhotar” a vida digital deles?
Começo fazendo uma pergunta: o que é privacidade? Não há uma privacidade única. Seu significado é construído em cada família e em cada cultura. É um conceito que tem a ver com proximidade e com intimidade. O grau ideal de proximidade entre os membros de uma família varia conforme os filhos vão crescendo. Há famílias que cultivam muita proximidade, mesmo quando os filhos são jovens adultos e já moram sozinhos. Cultivar proximidade envolve manter uma comunicação aberta, que permita compartilhar experiências pessoais sem sentir-se julgado ou oprimido. Isto não significa que há necessidade de ter as pessoas ao lado ou ao alcance da mão – e do celular – a todo momento. Ao contrário, só funciona bem se as pessoas conseguem desenvolver e manter seu espaço pessoal preservado, ou seja, sua privacidade.
Isso quer dizer, então, que pré-adolescente precisa de privacidade?
A necessidade de privacidade começa justamente na pré-adolescência. Isto não ocorre por acaso. É neste período que se torna disponível um tipo de habilidade de pensamento que possibilita interpretar com maior profundidade os acontecimentos da vida e as intenções das pessoas. Surge, assim, o interesse em registrar pensamentos e acontecimentos pessoais. Há 50 anos, era comum os pais e familiares presentearem as meninas com diários em lindas encadernações, que incluíam um cadeado com chave. Era plenamente aceitável, portanto, que elas poderiam manter segredos e, ao mesmo tempo, era incentivado que pudessem expressar seus mais profundos pensamentos sem temer julgamento ou reprovação. Os meninos, muitas vezes, eram convidados a participar do mundo secreto dos homens. Embora a necessidade de privacidade só inicie nesta fase, seu significado é construído gradativamente no contexto das relações familiares desde a educação infantil. Ensinamos a criança que é preciso fechar a porta do banheiro, que ela não pode tirar a roupa em qualquer lugar, que somente os pais (e quem autorizamos) pode dar o banho etc… Vai se formando um conceito que inclui experiências e fronteiras que delimitam o meu espaço e o do outro.
Como os pais podem se autocontrolar e evitar um monitoramento excessivo?
É preciso manter uma comunicação aberta e, para isso, a criança precisa de um ambiente que lhe dê segurança, ou seja, que não seja negligente nem use punição em excesso. Poder conversar sobre as experiências boas e ruins, vividas longe dos pais, permite criar ensaios para o que virá depois. A criança vai aprender que existe diferença entre ter intenção de fazer algo ruim ou de ter sido sem querer. Ela será, gradualmente, incentivada a assumir suas decisões, enfrentar consequências e procurar reparar seus erros. Desse modo, vai compreender, por exemplo, que não devemos fazer para o outro o que não queremos que façam conosco e, quando ocorrer algo inesperado ou uma quebra de expectativa, a criança vai querer compartilhar isto em casa. Quando esse ambiente é construído, os pais conhecem seu pré-adolescente e confiam nele. O espaço para a privacidade, portanto, também é uma conquista. Ler mensagens do celular ou entrar no computador do pré-adolescente é invasão. Ficar controlando o filho pelo WhatsApp a toda hora, como se ele tivesse uma tornozeleira eletrônica, pode resultar em uma necessidade dele se afastar ainda maior.
Mas, especialmente no que diz respeito à tecnologia, muitos especialistas sugerem que a pré-adolescência é uma espécie de “ensaio” para a adolescência e, por isso, eles precisam aprender a se comportar também no mundo digital. Assim como ensinamos um tween a pegar o ônibus, temos que guiá-lo no mundo online. Como você vê isso?
Acredito que segue existindo necessidade de monitoramento. Os pais precisam estar atentos ao que ocorre, por exemplo, na escola ou nos grupos virtuais. Manter contato e, se possível, fazer amizade com pais de colegas é uma saída. Esta rede de pais pode ser de grande ajuda para manter-se informado e para discutir dúvidas e problemas que surgirem. Vivemos em um tempo de confusão extrema em relação ao que é público e o que é privado. Agora mesmo acabamos de ver o Facebook dizendo que vai cancelar o perfil de menores de 13 anos (a criação desses perfis por pré-adolescentes já era proibida mas, na semana passada, a empresa orientou seus revisores para que “suspendam qualquer conta que tenha forte indício de ser de alguém de menos de 13 anos”) e acho que isso ajuda a colocar a questão da exposição e da privacidade em discussão nas famílias. Vamos aproveitar a oportunidade e conversar.