Uma resolução publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no último dia 16 está sendo contestada pelo Ministério Público Federal (MPF) por permitir que a autonomia da mãe na escolha de procedimentos durante o parto seja caracterizada como abuso de direito da mulher em relação ao feto.
Publicado no Diário Oficial da União, o texto do CFM delimita as situações em que um paciente pode recusar tratamento e determina como os médicos devem agir nesses casos. A resolução aponta situações em que a “recusa terapêutica” não deve ser aceita pelo médico, como quando colocar em risco a saúde de terceiros —por exemplo, na rejeição ao tratamento de doença transmissível.
O ponto do texto que causou polêmica entre profissionais da área e levou à atuação do MPF diz respeito às gestantes: no caso delas, diz a norma, a recusa terapêutica deve ser analisada “na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.
Se a gestante não quiser, por exemplo, fazer uma cesárea na hora do parto ou submeter-se a procedimentos como a episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de passagem do bebê), e o médico considerar que tais medidas são necessárias para a saúde do bebê, o profissional é avalizado pelo CFM a acionar as autoridades, se assim decidir, incluindo o Ministério Público, para “tomada das providências necessárias visando assegurar o tratamento proposto”. Antes da resolução, diz o CFM, este ato poderia ser considerado quebra do sigilo médico.
O mesmo entendimento utilizado no caso do parto vale, segundo a entidade médica, por exemplo, para o uso de determinadas medicações ou exames, como transfusão de sangue, vacina ou o início de tratamentos contra o HIV, ainda durante a gestação.
A resolução do CFM não tem força de lei, mas funciona como guia ético para os profissionais. Ela também regulamenta a objeção de consciência do médico, ou seja, quando ele deixa de realizar condutas que, embora permitidas por lei, são contrárias à sua consciência.
Em recomendação expedida na última quarta-feira (25) e assinada por 16 procuradores de nove estados, o MPF pede que o CFM revogue os artigos da resolução que tratam da assistência a grávidas, “reconhecendo que apenas em casos de iminente risco de morte o médico poderá adotar medidas em contrariedade ao desejo materno”.
Segundo o MPF, a aplicação das novas regras tende a favorecer cesarianas e procedimentos desnecessários. “Além de contrariar o Código de Ética Médica, o desrespeito à autonomia da gestante também configura crime”, dizem os procuradores. Eles afirmam que “os profissionais que agirem conforme a Resolução nº 2232/2019 poderão responder por constrangimento ilegal”.
O CFM afirmou, em nota, que a resolução não foi elaborada com foco na saúde materna, e que, nesse tema, “não identificamos inconstitucionalidade em considerar abuso de poder a recusa terapêutica materna em realizar um procedimento que afastará o perigo à vida do filho”.
Como comparação, cita o exemplo de “pais que se recusam a autorizar ou a permitir o tratamento de uma criança, expondo-a a perigo, retirando-a do hospital sem alta médica” e diz que “há precedentes nacionais e estrangeiros de intervenção judicial em situações semelhantes, todas decididas em favor do melhor interesse da criança”.
‘Medida perigosa’
Grupos de ginecologistas e obstetras vêm debatendo a resolução desde sua publicação. A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia afirmou que o texto “pode auxiliar os colegas a continuar prestando atendimento médico às gestantes”.
“Recomendamos aos colegas associados que procurem aplicar as melhores práticas obstétricas, respeitando a autonomia da paciente, mas não se esquecendo dos princípios da não maleficência e da proporcionalidade, que nos resguardam o direito de executar o que é recomendado cientificamente para o binômio mãe-feto”, diz o texto da instituição.
Vozes de destaque no meio, no entanto, temem que a norma seja uma brecha para legitimar práticas já não indicadas pela Organização Mundial da Saúde e consideradas ineficazes, como a episiotomia.
A ginecologista e obstetra Ana Teresa Derraik, do Nosso Instituto, organização com foco em direitos sexuais reprodutivos, afirma que a resolução elimina o poder de escolha das mulheres.
— A nova norma do CFM é perigosa pois pode ser utilizada como justificativa para procedimentos que abreviam o período do parto contra a vontade da mulher — diz ela.
O argumento de que há risco ao feto poderia ser usado, diz a médica, para justificar práticas obsoletas, como a episiotomia ou a manobra de Kristeller, em que se aperta o fundo do útero, empurrando o feto para baixo.
— A assistência ao parto é historicamente muito violenta, e essas condutas, no passado, eram tidas como padrão. A resolução do CFM parece resgatar condutas que motivaram críticas de profissionais e das mulheres para caírem em desuso.
A médica acrescenta que quem pode sofrer mais as consequências desta resolução são as mulheres pobres, negras e de baixa escolaridade, “que já são hoje as principais vítimas de violência obstétrica”. O termo é utilizado para designar maus-tratos — físicos ou verbais — ocorridos durante o parto.
‘Forma retrógrada’
Professora Associada de Ginecologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, Melania Amorim, que faz parte da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, acredita que a “autonomia feminina fica seriamente ameaçada” com a resolução do CFM.
— Realizar procedimentos no corpo das mulheres sem seu consentimento deveria constituir infração ética grave, salvo em condições de risco iminente de morte. Não se justificam ressalvas em nome de direitos e supostos benefícios ao feto — diz. — O corpo da mulher é da mulher e ela não pode ser considerada mero repositório do feto.
Membro da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, ela considera que a norma se equipara ao Estatuto do Nascituro, projeto de lei em tramitação no Congresso sobre o direito do feto que prevê, entre outras medidas, a aprovação de uma “bolsa” para mulheres vítimas de estupro que decidirem prosseguir com a gravidez.
Amorim argumenta que a resolução do CFM também parte do princípio de que os direitos – e a saúde – do feto se sobrepõem aos da mulher.
— O CFM claramente vem se posicionando de forma retrógrada em relação aos direitos sexuais e reprodutivos — pontua, acrescentando que a Rede pretende iniciar uma mobilização com outras ONGs para pressionar o Ministério Públuico a denunciar a norma.
Artigo na resolução sobre exceção
São considerados casos de abuso de direito, segundo a Resolução, aqueles em que a recusa terapêutica pode colocar em risco a saúde de terceiros. Além disso, a recusa não aplica ao tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação. Quando manifestada por gestante, a recusa terapêutica também deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe e feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.