Flávio Lúcio Vieira – Doutor em Sociologia
É sempre difícil separar política de justiça. Aliás, é sempre difícil separar política de qualquer atividade humana. Tanto que Max Weber, o conhecido sociólogo alemão, resolveu separar política de ciência e atribuir a elas duas “vocações distintas”. Ou se faz política ou se faz ciência.
À parte questões de ordem política, sociais ou mesmo epistemológicas, a justiça, especialmente a eleitoral, tem que estabelecer um parâmetro, se não de “neutralidade” diante dos fatos do mundo político, mas de critérios objetivos e de longo prazo para que a “politização da justiça” não se efetive em relação ao seu contraponto: a judicialização da polítca.
Enfim, nem a justiça pode normatizar a política – o que seria o fim desta última – nem o inverso pode também se estabelecer – a política determinar as decisões judiciais. Como a “justiça” não existe como uma instituição abstrata, exatamente porque é feita por homens e mulheres, é nas decisões que tomam seus juízes que a justiça se manifesta e se estabelece como instituição.
E é da crença que o julgamento desses juízes não está eivado de subjetividades e interesses que a justiça se legitima como imprescindível para o cidadão e para o Estado. Enfim, a justiça – os juízes – deve sempre levar em consideração que cada caso é um caso e julgá-los diante dos princípios de igualdade e universalidade, que é o principal legado da ordem jurídica que nasceu com a Revolução Francesa.
Dito isto, passemos ao debate a que esta coluna se propõe. Está em julgamento no TRE desde a última terça o prefeito de Campina Grande, Veneziano Vital do Rego.
Veneziano é acusado de receber e usar em sua campanha recursos públicos oriundos de depósitos feitos por uma empresa que presta serviços à prefeitura de Campina Grande, a Construtora Maranatha.
Vital do Rego foi cassado em primeira instância, mesmo depois de suas contas terem sido aprovadas pelo primeiro Juiz do caso, Reginaldo Nunes. Em seguida, essas mesmas contas foram também aprovadas (sem ressalvas) pelo próprio TRE, que negou inclusive recurso ao PSDB contra a sua aprovação.
Veneziano Vital foi condenado pelo juiz que passou a ocupar a titularidade da 16ª Zona Eleitoral, Francisco Antunes, e que substituiu o juiz Reginaldo Nunes. Dois juízes, duas visões sobre o mesmo fato.
Conisdero ser necessário fazer aqui um breve resumo desse caso:
1. Não está provado houve transferência de recursos do Fundo Municipal de Saúde para a conta da campanha de Vital do Rego. Para que se comprove o contrário, seria necessário apresentar qualquer registro sobre um único depósito, o que até agora não foi feito. Nem pelos advogados do PSDB, nem pelo juiz de primeira instância, nem pelo ministério público eleitoral, nem muito menos pelo relator do processo no TRE.
Enfim, não há comprovação de que qualquer cheque da Prefeitura ou do Fundo Municipal de Saúde tenha sido depoisitado na conta de campanha do PMDB. Ao contrário, o ministério público eleitoral diz textualmente em seu parecer que não houve crime eleitoral no que diz respeito a esse fato. Que crime então foi cometido?
2. Todos os depósitos associados ao Caso Maranatha foram feitos com a identificação dos doadores, todos pessoas físicas . O cheque causador de toda essa polêmica jurídica foi resultado de um pagamento feito à Maranatha pela construção de um centro de saúde no distrito de São José da Mata, obra concluída e hoje em pleno funcionamento. A empresa foi paga, como é usual, com os recursos do Fundo Municipal de Saúde.
É tambem importante saber o que aconteceu na agência bancária no dia em que o fato que deu origem a ação transcorreu.
O representante da Maranatha tentou sacar o dinheiro a que sua empresa fazia jus por três vezes, não conseguindo porque a agência “não tinha numerário suficiente para pagá-lo em espécie”, segundo declaração oficial do próprio Banco do Brasil que consta nos autos do processo.
Houve depósitos nesse dia na conta de campanha de Veneziano Vital, mas nenhum da Maranhata e nem do Fundo Municipal de Saúde. Segundo a primeira versão originada ainda durante a campanha de 2008 pelo adversário de Vital do Rego, o atual Vice-Governador Rômulo Gouveia, a Construtora Maranata depositara um cheque do FMS na conta de campanha do PMDB.
Essa versão foi modificada em seguida: o cheque fora na realidade sacado e “rateado” entre os assessores de Veneziano Vital e, só depois, foi parar na conta de campanha. É esse o fato objeto da decisão judicial em se baseia o relator do processo, juiz João Batista.
Nesse caso, resta comprovar, de maneira inconteste, que aquele cheque específico foi convertido em dinheiro e repassado para assessores e apoiadores, todos, por razões óbvias, interessados na vitória do seu líder político, e só depois foi parar na conta de campanha do prefeito. O fato de serem esses doadores assessores do prefeito campinense nada tem de incomum.
Vejam, por exemplo, as contribuições individuais feitas à campanha de 2010 do atual governador, Ricardo Coutinho. Quantos assessores da prefeitura de João Pessoa depositaram valores, alguns expressivos na conta de campanha do ex-prefeito de João Pessoa?
E por que seria considerado anormal indivíduos interessados em preservar suas posições na prefeitura, que seriam perdidas em caso de derrota, fazerem doações à campanha do seu candidato a prefeito?
E mesmo considerando o que foi aceito pelo Juiz como verdade, onde está comprovado o uso de recursos públicos na campanha de Veneziano Vital?
É provável que, pela primeira vez, um ato de corrupção eleitoral tenha sido tão organizadamente documentado, com guias de depósitos devidamente identificados e recibos assinados.
Ou Veneziano e seus assessores parecem gostar de facilitar a vida dos adversários e dos juízes eleitorais ou, pelo visto, alguns juízes eleitorais se aproveitam disso para inferir o que bem entenderem a respeito de determinados fatos.
Existe outra questão que merece uma observação atenta da sociedade, pois não se trata apenas de um interesse político em particular, mas da preservação de instituições democráticas, que devem se manter impessoais e, portanto, que trate a todos pelo princípio da equidade.
Dois fatos que antecederam o julgamento de Veneziano Vital podem deixar dúvidas a respeito de até que ponto a justiça pode se deixar levar pelas pressões externas.
O primeiro foi a organização de uma série de ataques à justiça paraibana.
Ataques originados em meios de comunicação feitos por jornalistas cujo alinhamento político a lideranças e partidos é inconteste, especialmente contra o TRE, que aparentavam ser, àquela época (meados de 2010) uma reação tardia contra a cassação do ex-governador Cássio e sem objetivos claros e definidos, pois se deram meses depois da cassação do mandato do ex-governador tucano. Esses ataques foram feitos através de páginas e blogs da internet paraibana.
Jornalistas como Luís Torres deram desmesurado espaço para todo tipo de ilação contra a Corte paraibana, dando a entender que a decisão de cassar o ex-governador Cássio Cunha Lima tinha um viés político em razão da influência que exercia sobre toda a justiça paraibana a desembargadora Fátima Bezerra, esposa do ex-governador José Maranhão.
Diante do fato atual, é possível entender agora que as reais intenções daquela campanha eram na realidade preventivas: acossar os juízes do TRE, jogando sobre eles a suspeita de envolvimento político, para depois exigirem provas de independência quando fosse julgado o caso de Veneziano Vital.
Se Cássio foi cassado, Veneziano também deveria ser. E isso seria a única maneira de provar a “independência” da justiça eleitoral paraibana. Do contrário, a Corte manteria pendendo sobre si a vinculação política.
Caso aquela “campanha” tivesse começado só agora, ficaria explícita a intenção de “pressionar” os desembargadores para cassarem Veneziano Vital.
Escutem o sepulcral silêncio desses setores da imprensa que permeia o caso hoje, especialmente quando um juiz relator se pronuncia publicamente defendendo a cassação do prefeito de Campina Grande em uma cadeia de rádio ligada ao governador Ricardo Coutinho e a seu vice, Rômulo Gouveia, que é diretamente interessado no caso, pois seria ele a assumir o posto de Veneziano Vital em caso de cassação.
Onde estão os brados de indignação com tal postura que fere não apenas o interesse de um cidadão, mas tambpem o código de ética da magistratura? Ao contrário. As declarações do juiz são usadas para reverberar uma opinião que se quer única nesse processo.
Não há como estabelecer nenhum sinal de igualdade entre os fatos que determinaram a cassação do ex-governador Cássio e os que podem levar à cassação de Veneziano Vital. No caso Cássio, as provas eram incontestáveis e não se originavam apenas em uma ação específica.
Cássio foi cassado por conta da distribuição ilegal e sem critérios pre-estabelecidos de cheques a cidadãos em plena campanha elitoral, mas também pelo “conjunto da obra”, em inumeráveis ações que ajudavam a fortalecer que o uso da máquina pública foi decisiva na eleição de 2006.
No caso de Veneziano, existem mais dúvidas do que certezas, e no que interessa (uso de recursos públicos no financiamento de campanha) ainda está por ser provado.
E num aspecto político decisivo o caso de Cássio se distingue do de Veneziano: a cassação do ex-governador não o afastou da vida pública um mês sequer, como demonstra sua participação vitoriosa na eleição de 2010.
No caso de Veneziano, caso cassado pelo TRE, o atual prefeito campinense estaria afastado das disputas eleitorais até 2020!
E Veneziano desponta hoje como o principal antagonista do atual governador Ricardo Coutinho, que se beneficiaria da decisão duplamente: afastando Veneziano da prefeitura, Coutinho a entregaria a um aliado e se livraria de mais um potencial candidato cuja participação tornaria em qualquer circunstância renhida a futura disputa eleitoral.
E mesmo que o TSE corrija uma eventual injustiça, fazendo-o voltar ao cargo, a pena de Vital do Rego já estaria estabelecida pela lei Ficha Limpa. Um prejuízo irremediável para Veneziano Vital, para a política e para as instituições paraibanas.
Não se advoga aqui que esse aspecto político seja o único a determinar as decisões do TRE no caso da cassação de Veneziano. O problema é que o processo levanta sérias dúvidas para que se advogue um remédio jurídico cujas consequências para o futuro de um cidadão são irremediáveis e que, principalmente, leve à exclusão do prefeito de Campina das disputas eleitorais por oito anos.
Se a justiça paraibana deseja comprovar sua independência, que o faça retringindo seus julgamentos às provas que constam nos processos. E julgue a todos pelos critérios da objetividade e sem medo de acusações infundadas.
Por isso, encerro com Edmund Burke: “É o medo o mais ignorante, o mais injusto e cruel dos conselheiros.”