Rubens Nóbrega

Valente sempre foi um forte, antes de tudo, no mais euclidiano sentido da palavra. E fazendo jus ao nome, que é nome próprio, e não apelido, como alguém pode pensar.
Ele é um entre os sobreviventes das misérias e secas sertanejas. Sobreviventes porque escapam da fome, enganam a morte e fogem para a cidade grande, onde alguns se fazem gente e outros, bichos.
Mas Valente é mesmo cabra valente. E olha que não é do tipo guarda-roupa, dois de largura por dois de altura, desses que hoje em dia se vê na rua exibindo músculos e tatuagens.
Valente deve ter o quê?… Metro e setenta? No máximo. Mas é troncudo, braço firme e pulsos certeiros a serviço de uma coragem pessoal testada e aprovada em vários episódios.
Mas não pensem vocês que o sujeito é do tipo arruaceiro, que usa o destemor, a pouca noção de perigo e ausência total de medo para sair por aí puxando briga. Nada disso.
No geral, Valente gosta de ficar na dele, só se fazendo notar quando abre a boca, porque falta tão alto que chama a atenção mesmo em feira livre na hora da garapa.
Diz ele que é por causa da mouquice adquirida nos tempos do Quinze. Era da equipe de tiro. Um disparo de fuzil pertinho do ouvido lhe estourou o tímpano.
Fora isso, Valente só teria dois problemas (ou não): não suporta ver injustiça e quando toma uma… Sai de baixo!
Ou de perto. Nessas horas, além de valente, o ‘home’ fica brabo. E se estiver calibrado, e presenciar o que presenciou domingo passado, aí vira fera.
Aconteceu de Valente estar com a sua deusa na praia, consumindo praticamente sozinho o camarão e o caranguejo no coco que uma senhora vende naquele pedaço.
Delícia o tira-gosto da mulher. Coisa que ela traz pronta de casa, com ajuda de filho pequeno. Traz dentro de caldeirão e se arranja debaixo de coqueiro, onde acende um foguinho pra comida ficar quentinha até acabar.
Pois não é que num repente apareceram dois bombados e mandaram a mulher recolher os troços.
Mesmo na hora em que a deusa pediu mais uma cumbuquinha de ensopado e a mulher, chorando, comunicou o fim do serviço.
Percebendo a aflição da vendedora e o que estava rolando naquele instante, Valente levantou-se, bateu a areia do calção e foi ‘se entender’ com os bombados.
Embalado por seis ou sete latinhas que lhe irrigaram o sangue e o juízo com cerveja, Valente já chegou avisando: ninguém mexe com a fornecedora do tira-gosto.
– Nós estamos apenas cumprindo ordens, cidadão – tentou justificar um dos agentes da Sedurb, o órgão municipal encarregado de tirar camelô das ruas, das calçadas e praias, na moral ou na porrada.
– Mas vocês não vão tirar ela daqui, mas não vão mesmo. Aliás, só tiram ela se passarem por cima de mim – advertiu Valente, subindo o tom.
– A gente não quer briga, moço, só estamos fazendo o nosso serviço. E se um fiscal passar por aqui e encontrar essa mulher… – quis argumentar o outro.
– Então, vá chamar o fiscal, o secretário, prefeito, governador, polícia, o escambau. Quero ver tirar a mulher daqui! – desafiou Valente.
Os guardas nada disseram. Afastaram-se em silêncio, sob o olhar atento e sóbrio da deusa do herói, que viu quando um deles pegou o celular e ligou.
“Deve ser pra polícia”, pensou a mulher de Valente, que vendo a hora o marido ir preso passou a suplicar para irem embora. Claro que ele não concordou.
– Ir embora por que, mulher? Só faltava essa! Vêm uns covardes acabar com o ganha-pão de uma pobre coitada e a gente tem que agüentar. Eu que num agüento. E vou ficar aqui. Se quiserem chamar a polícia, que chamem – aventou-se.
Não deu meia hora, estacionou pertinho dali uma viatura. Desceram dois PMS. Um terceiro ficou dentro do carro, ao volante.
Os policiais caminharam um pouco pela calçadinha, observando as pessoas como quem procura encaixar uma descrição. Não demoraram e deram com Valente.
Chegaram junto, mas perguntando educadamente se estava tudo em ordem, se “tinha algum problema”. Pediram documento.
– Problema nenhum, soldado, a não ser uns bombados que vieram por aqui pra ameaçar aquela pobre mulher ali – explicou Valente, enquanto entregava a carteira de motorista ao PM com pose de comandante da tropa.
– Peraí, amigo, você por acaso serviu no Quinze em 76? – perguntou o soldado na verdade um cabo.
– Servi, servi sim – confirmou Valente.
– Tá lembrado de mim não, cara? Sou eu, Zezão! Lembra não? Fomos da mesma turma de tiro… – avivou o cabo, tirando o quepe para facilitar o reconhecimento.
Foi uma festa. Abraços, apertos de mão, troca de números de telefone, recordações ligeiras da caserna e promessas de tomarem uma juntos, qualquer dia.
– Eu tô sempre por aqui, comendo o tira-gosto da comadre ali, que não tem melhor – revelou.
– É porque você não provou o peixe frito que a minha mulher faz e vende lá perto do Busto. Sabe como é, né?… O Estado paga uma merreca e a gente tem que se virar pra não passar necessidade – disse Zezão.