Uma senhora envergonhada

Rubens Nóbrega

Costumo chamá-la carinhosamente de Dona Coisa. Não que ela seja ‘uma coisa’, de feia. Muito pelo contrário. Novinha, uma beleza! Já na maturidade, alguma chance há de vê-la inteirona, desfilando toda a glória e graça com que foi concebida e gerada.
E quando me lembro dela ainda criança? Ah, tão pura, tão imaculada! É lembrança que me faz cantar Orlando Dias. Quando acontece, querendo ou não, não demora e começo: “Tu és a criatura mais linda que meus olhos já viram…”.
Mas não é fácil. Inevitável o desgaste que o passar dos anos impõe a todos nós. Afinal, já ensinava o filósofo Múcio Souto, “o tempo é um construtor de ruínas”. Que parece castigar mais cruelmente as nossas mais distintas e venerandas senhoras.
Por essas e outras, assim que a identifiquei na Calçadinha da orla, caminhando toda disfarçada e paramentada anteontem pela manhã, também percebi antes de cumprimentá-la o quanto ela gostaria de naquele momento passar despercebida.
Ela não queria mesmo era chamar a atenção, saberia este admirador em instantes. Muito mais do que se proteger de novas manchas, a ideia era se manter na sombra, literalmente, pelo menos naquele dia, que deveria ser de muita alegria. Mas…
Pois bem, apesar de sacar tudo isso, não resisti. Fã, inoportuno e inconveniente como todo fã, dei-lhe parabéns pela data (ela faz aniversário no 15 de novembro) e fiz saudação de respeito, mas um tanto quanto espalhafatosa, do tipo que tanto encabula como estanca a caminhada.

Diálogo proveitoso
Ela retribuiu tímida e discretamente o meu cumprimento (“Salve, salve, Dona Coisa!”), porque outro jeito não haveria, talvez, de se livrar rapidamente de quem a interrompia e seguramente não atrairia as atenções dos demais transeuntes.
Fiquei no lucro mesmo assim, por ela ter me concedido a graça de um diálogo curto, ligeiro, mas bastante proveitoso, desses em que meias e sábias palavras bastam para nos atualizar sobre o estado de espírito e as expectativas do interlocutor.
Em nossa conversa não citou nomes, talvez nem precise, mas lamentou com amargura que tantos a estejam enxovalhando, enlameando. Pior: fazendo tudo isso em nome dela, subtraindo a pátria mãe gentil no correr e ao cabo de tenebrosas transações.
Atribuiu parte dessa bandalheira à própria origem dela, pois considera que aqui o seu nascimento deu-se por motivos bem diferentes daqueles princípios que motivaram, forjaram e fizeram a razão de ser da sua concepção em outros lugares.
“Pra você me entender melhor, meu rapaz, quero que me leia a minha pequena história contada por Graciliano, que resume magistralmente como vim parar aqui”, recomendou-me.
De quem se trata
Antes de prosseguir, deixem-me apresentá-la por completo. Conversei no feriado com Dona Coisa, na verdade Dona Coisa Pública, também conhecida como República, esta senhora tão venerada quanto enganada. Inclusive por alguns que se dizem republicanos.
Ela confessou-me tremenda preocupação com os rumos com que gente dessa espécie tenta conduzir o seu destino, sobretudo nas unidades mais pobres da federação. Naturalmente, tratamos o caso da Paraíba, que a deixa particularmente aflita, tamanha a desfaçatez dos que se locupletam e enriquecem à custa da res publica.
Quanto ao resumo que me sugeriu ler, descobri e li ‘A Pequena História da República’, de Graciliano Ramos, de quem também sou muito fã, que se refere assim ao surgimento da respeitada senhora entre nós:
– Em 15 de novembro de 89 houve grande facilidade, tão grande que os republicanos se espantaram. E o povo encolheu os ombros. Pouco antes da vitória o número de conspiradores era insignificante. Obtido o apoio de um chefe (Deodoro), todos baixaram a cabeça e obedeceram. Aquilo veio de cima para baixo. Propriamente não houve revolução: houve uma ordem.
Outra curiosidade

Uma vez no poder, proclamado presidente, o Marechal Deodoro teve atitudes tão absolutistas quanto qualquer déspota inculto que se acha a própria bala.
Pra vocês terem uma ideia do quanto a história se repete mesmo como farsa ou tragédia, diante das primeiras dificuldades de governo o Deodoro de então endureceu o discurso, o jogo e, como sói, tentou calar a imprensa, retirou vários jornais de circulação e criou um tribunal de exceção para julgar “as pessoas que originavam, falando ou escrevendo, a revolta civil ou a indisciplina militar”.
Ainda de acordo com Major Graça, “Deodoro queria a liberdade de pensamento, mas uma liberdade que não o contrariasse”.
De fato, me foi bastante útil e ilustrativa a leitura recomendada por Dona República. O texto do gênio alagoano faz a gente realmente entender porque ela tem certa vergonha de seu início no Brasil e mais envergonhada ainda deve estar hoje, pela impressão que me deixou nosso encontro.