Nonato Guedes
Quando a presidente Dilma Rousseff, num ato de coragem, proclamou a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar violações de direitos humanos, cometidas, sobretudo, no regime militar, tinha-se a vaga intuição de que seria um parto extremamente doloroso. Ainda que não tivesse poder de punir, por causa da Lei da Anistia que teve caráter recíproco, alcançando torturados e torturadores, a Comissão estava fadada a produzir um diagnóstico contundente, com revelações até então enterradas nos subterrâneos dos centros de tortura. A Comissão tem o condão de, pelo menos, contar às novas gerações o que aconteceu nas noites de trevas, e imunizá-las contra o contágio de recaídas autoritárias.
A exposição de nomes de agentes especializados na violência é o mínimo que a CNV pode se permitir, porque não há histórias sem protagonistas. Mas é incrível como a verdade incomoda. Estamos tendo uma prévia dessa realidade agora, com os arreganhos de remanescentes da repressão que estão sendo chamados a depor, em audiências públicas, realizadas em ambientes como a Câmara Federal. Desse ponto de vista foi emblemática a reação de um certo Brilhante Ulstra, codinome “Doutor Tibiriçá”, oficial que comandava com sadismo sessões de arbitrariedade contra ativistas políticos que tinham a desventura de serem apanhados pelas garras da ditadura. O “Doutor Tibiriçá” tentou escafeder-se atirando, como agiu ao qualificar Dilma Vana Rousseff de terrorista, evitando atribuir a si próprio a pecha nada ilustrativa de torturador.
Outras vozes evolam do santuário de horrores dos Doi-Codi da vida para protestar contra o que seria uma postura de revanchismo adotada pela Comissão da Verdade, hoje detentora de embriões em inúmeros Estados do país. Fica difícil provar que o órgão instituído por Dilma, ela própria vítima de seqüelas físicas e psicológicas, tenha essa conotação de acerto de contas. Na origem, não foi esse o desideratum que a motivou. O que se pretendia era contar o circo de horrores, como fórmula didática para que não se repetisse nas entranhas de regimes políticos no Brasil. Dar, finalmente, o direito de voz aos órfãos do talvez, do quem sabe, às vítimas dos desaparecimentos forjados que, de forma sôfrega, conseguiram escapar do inferno de Dante. O terrorismo de Estado foi a nódoa maior que ficou na consciência de parcelas da sociedade comprometidas com os princípios de liberdade, democracia e justiça social.
Nenhuma nação consegue manter-se pacificada quando há espíritos desassossegados, clamando por informações sobre locais onde corpos foram desovados, jogados como bichos. O terrorismo sancionado pelo Estado é uma forma de barbárie. Agride, portanto, os foros de civilização. Faz o ser humano retroceder à época das cavernas. Insistem os remanescentes da linha dura encastelada no poder no argumento de que havia uma guerra, e que um dos lados perdeu. É preciso lembrar, porém, que essa guerra foi declarada pelo Estado, com todo o seu aparato clandestino de intimidação, a pretexto de combater os inimigos da ordem, os partidários da subversão. No final das contas, descobriu-se que o regime parido em 64 nem foi eficaz no combate à subversão e muito menos à corrupção, esta tornada escancarada, nas negociatas de obras faraônicas, grandiloquentes, compatíveis com o ufanismo piegas de “um país que vai para a frente”.
Haverá novas turbulências, no bojo das investigações que estão sendo procedidas, e que levarão à localização de granjas, sítios ou casarões onde funcionavam as centrais da intimidação. Virão à tona nomes de pessoas que freqüentam a sociedade nos diferentes lugares, que ganham notas em colunas sociais, que aparecem como exemplos edificantes de pais de família. E que, no entanto, têm as mãos apinhadas de sangue. Imaginava-se que ia ser assim, e assim está sendo. Os torturadores não vão aceitar incólumes a pecha de terroristas. Preferem o rótulo de “patriotas”, um neologismo insultuoso para quem patrocinava assaltos a fim de garantir dinheiro para manter ativa a paranóia repressiva.
O Brasil está sob os holofotes mundiais com a Comissão Nacional da Verdade, e é fundamental que esteja. Não podemos esquecer que a repressão montada no regime militar foi combinada com a censura aos meios de comunicação. E foi a censura que possibilitou a ocultação de fatos hediondos, que inibiu relatos sobre fatos dantescos que infelicitaram esta terra e os seus filhos idealistas. Agora não há censura. Que pelo menos a revelação dos horrores venha à tona, de forma límpida, cristalina, transparente!