“Um filho não foge à luta”

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Nonato Guedes

Dou minha modesta contribuição para o debate insuflado pela onda de protestos que se esparrama pelo Brasil: urge retirar da letra do Hino Nacional aquela expressão “deitado eternamente em berço esplêndido”, por absoluta defasagem aos preceitos consuetudinários. Afinal de contas, o gigante acordou. Continua a rugir, nas redes, nas ruas. A sociedade saiu da cama quando pipocaram os protestos “contra tudo isso que está aí”. Por causa deles, alguns políticos perderam a eloquência, outros perderam a voz literalmente, mais outros decidiram agir, atabalhoadamente. O cordão, é claro, foi puxado pela presidente Dilma Rousseff, mas logo acolheu os senadores, deputados, ministros do Supremo, prefeitos, governadores, juízes, jornalistas.

O gigante deixou com insônia as elites ávidas por privilégios. Estão todas niveladas. Do governo à oposição, em qualquer instância. Na internet, os portais noticiosos estão coalhados de notícias sobre reuniões, de comentários com sugestões, de uma fermentação debatedora como nunca se viu, talvez, na história política brasileira. Desta feita, pode-se dizer que a montanha não pariu um rato. O instinto de sobrevivência ou do apego ao poder contaminou os que estavam no topo e olhavam com superioridade para uma massa disforme chamada opinião pública. Comprovou-se que as coisas acontecem quando há vontade política. Ainda que esse vontade seja imposta goela abaixo, pelo poder de pressão que passou a ser exercido por rostos anônimos. As figuras carimbadas tentam pegar carona de alguma forma na “ola” que se cristalizou, para usarmos um termo do esporte, já que estamos em Copa de Confederações.

É compreensível que haja, agora, uma enxurrada de propostas, do mesmo jeito como a mobilização escorada no repúdio ao reajuste de tarifas de transporte público escondia um oceano de demandas represadas ou reprimidas ao longo do tempo. O Congresso está sendo convocado a vexar-se na aprovação de projetos que dormem em gavetas burocráticas. A presidente Dilma articula governadores, prefeitos, parlamentares. O fim da reeleição, a introdução do voto aberto em Casas legislativas, o combate à corrupção, afora as medidas de fôlego, estruturantes, focadas em prioridades como saúde, educação, transporte…tudo está sendo retirado do armário. O tempo urge, as eleições de 2014 estão às portas. O dilúvio chegou e todos procuram se juntar na arca, na esperança de, pelo menos, poder contar a história depois. Ninguém quer ser afogado. Muito menos sofrer queimaduras dos incêndios que as emissoras de televisão mostram, sejam eles reais ou simbólicos, ilustrativos.

Vê-se que é fácil resolver as coisas quando há a tal vontade política tão apregoada em discursos e clichês oficiais. Antes, tudo era impossível. Dependia de ritos, de prazos burocráticos, por mais que esses prazos tenham vencido. Agora, é possível fazer tudo. Mais do que isso, é preciso fazer. Ninguém quer ficar de mãos abanando para não ter que admitir não ter sido convidado para a festa da democracia. Que está tendo lá seus excessos, partidos da minoria de sempre, integrada pelos baderneiros, por agitadores que se escondem atrás de slogans ou de extintas couraças partidárias. O próprio movimento da maioria está cuidando de isolar a parte necrosada da mobilização democrática. Desapareceram de circulação os candidatos a “Mãe Diná”. Mas não foram emitidos sinais para os quartéis. Essas são algumas das lições aleatórias que se pode extrair dessa primeira temporada de mobilização cívica.

Os poderosos se ajoelharam. Estão genuflexos, expiando os pecadas da omissão prolongada, da ambição desmedida que foi cimentada em décadas de privilégios, incrustados como mastodonte no organismo social e sobretudo na estrutura de poder verticalizada que até então imperava na conjuntura. A polifonia de vozes fere os tímpanos das oligarquias carcomidas porque se tornou ameaça concreta, palpável. Ninguém está brincando. Há uma generosa energia sendo canalizada. Transparência para agora, não para amanhã, eis o refrão que dá consistência a essa mobilização fenomenal.

Os políticos brasileiros, ao longo dos tempos, inventaram em tom melífluo que estavam adotando choques. De modernidade, de mudança. O gigante saiu com a lanterna de Diógenes para identificar esses choques, diagnosticar se correspondiam à voz rouca. Não correspondiam. Há mais maturidade na geração das redes sociais do que podia imaginar a vã filosofia de quem detém o poder. De repente, o poder mudou de mãos, e as elites não perceberam. Porque estavam na contramão do relógio, do fuso horário da sociedade. Em tempo: sugiro manter-se na letra do Hino a expressão “verás que um filho tem não foge à luta”. É mais compatível!