Um confronto chocante

Nonato Guedes

Foi chocante o confronto que dois estudantes – Davi Santos, de 24 anos, e Graziani Righi, de 28, que freqüentam o circuito universitário de Porto Alegre, tiveram com imagens do passado recente da ditadura militar. Ambos faziam um garimpo trivial, uma triagem para poupar do lixo documentos do arquivo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando encontraram prova irrefutável de fatos até então apresentados oficialmente sob outra versão. Essa versão descrevia como suicídio o agora descoberto homicídio do ex-militante Ângelo Cardoso da Silva, com passagens por organizações clandestinas de esquerda que combatiam a repressão imposta pelo golpe de 64.

A dupla de jovens deparou-se com fotos em que o corpo do ex-militante aparece enforcado na cela, num dos presídios da capital gaúcha utilizados como campos de tortura e de interrogatórios praticados por agentes da repressão e movidos a choques elétricos e outros tipos de violência inominável, para não dizer de sadismo. Noticiada pelo jornal “O Globo”, a descoberta transformou os dois estagiários de História em celebridades em sua terra, mas a fama veio acompanhada do trauma psicológico. Um trauma compreensível, por serem remanescentes de outra geração e por saberem apenas incidentalmente de relatos sobre horrores que compuseram a paisagem do país na longa noite das trevas. Davi já cogitou tirar férias, passar uma temporada no Rio de Janeiro e até mesmo mudar de curso. Não quer ser arqueólogo do circo de barbaridades que pontuou uma etapa dramática da vida brasileira. Se possível, deseja ser esquecido.

Graziani Righi não conteve a indignação e o sentimento de tristeza com o que foi feito com o povo brasileiro naqueles tempos sombrios. “Foi uma farsa descarada”, reagiu a universitária. No fundo, aconteceu o que se previa, ou se temia: o contato casual com o inesperado, com a surpresa desagradável, degradante, traduzida no espetáculo macabro da eliminação de um cidadão brasileiro pelo aparelho policial de Estado sob o argumento de puni-lo pelas ideias distintas, pelo “crime” de pensar diferente, de sonhar com uma Pátria livre, justa, não opressiva ou totalitária. Fico imaginando como reagiriam outros jovens da geração contemporânea se chegassem a ser levados às audiências públicas onde as Comissões da Verdade, nos Estados, reconstituem o ciclo interrompido na historiografia autêntica do país.

Há poucos dias tivemos o caso de uma vítima da repressão que concordou em passar por uma catarse perante uma dessas Comissões: recompor os detalhes das práticas terroristas a que foi submetida nos porões dos Doi-Codi espalhados Brasil afora. Falo em práticas terroristas porque cada vez mais vai se evidenciando a constatação de que o Estado patrocinou o terrorismo no hiato que suprimiu a democracia, as liberdades públicas, o direito de expressão. Que fechou Casas Legislativas, cassou mandatos, incendiou templos estudantis, queimou bancas de jornais, numa onda avassaladora que tinha muito de paranóia mas, sobretudo, de sadismo. Não foi sem fundamento que um magistrado digno ousou responsabilizar a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog. Ou pelo aniquilamento do operário Manoel Fiel Filho.

Com Herzog, o aparelho repressor montou a farsa do auto-enforcamento. As digitais contidas na foto que rodou o mundo inteiro não deixavam dúvidas de que ele fora enforcado, o que é algo inteiramente diferente. Herzog, num gesto de altivez, mesmo sabendo que o terrorismo estatal corria solto, ofereceu-se para ir depor. Não tinha nada a temer. Contestava o regime, sim, mas não era clandestino. Agia às claras. Era diretor da TV Cultura, emissora do governo de São Paulo, cujo titular, na época, recorreu a empresários para financiar uma malsinada Operação Bandeirantes, a Oban, que reproduzia um grupo de extermínio investido da missão de fuzilar comunistas, esquerdistas, ou qualquer ista que não combinasse com a ordem vigente.

Quando insisto em dizer que é preciso contar, penso justamente nas novas gerações que não vivenciaram de perto a temporada de caça às bruxas que foi detonada no Brasil. Muitos dos relatos, amplamente divulgados, podem evitar que jovens como Davi e Graziani tenham que se ver frente à frente com as sombras do terror refletidas nas imagens que os sicários, por mais que queiram, não conseguirão destruir. O país precisa se reencontrar com a paz, depois de passar pela recomposição da verdade.