O médico epidemiologista Nelson Arns Neumann, um dos coordenadores da Pastoral da Criança –fundada por sua mãe, Zilda Arns– diz ser favorável à vinda de médicos estrangeiros ao país, na contramão do que afirma a maioria dos seus colegas de profissão.
Neumann ressalta, porém, que além de aumentar o número de médicos é preciso melhorar a infraestrutura dos serviços de saúde no interior do país. Ele ainda critica a concentração dos investimentos em grandes cidades e hospitais. “Se nem médico brasileiro quer ir para o interior, o que está faltando? É só má vontade? Não”, afirmou.
O médico, atual coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança, braço da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), deu entrevista à Folha em meados de julho, poucos dias antes de embarcar para o evento que comemoraria os 30 anos da organização, completados neste ano.
Fundada em 1983 pela médica Zilda Arns, a instituição, que popularizou a fórmula do soro caseiro (água, sal e açúcar) para combater a desnutrição infantil, agora enfrenta a obesidade e a prematuridade.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Folha – O que o sr. pensa sobre a vinda de médicos estrangeiros ao país?
* Nelson Arns Neumann * – Eu gosto da ideia. Óbvio que ninguém quer um médico incapacitado, nem brasileiro nem estrangeiro. Agora, se nem médico brasileiro quer ir para o interior, o que está faltando? É só má vontade? Não. Tem uma questão de infraestrutura muito séria.
Às vezes, o investimento do poder público acaba sendo concentrador. Cada vez que eu inauguro um hospital numa cidade de porte, eu estou estimulando o pessoal a vir aqui ou a sofrer mais lá. Então, a interiorização dos recursos é necessária.
O sr. concorda com os protestos das ruas, de que faltam recursos para a saúde no Brasil?
Sim. O que eu receio, porém, é que aconteça mais ou menos o que a gente vê com a Copa. Esses bilhões gastos em estádios, se fossem aplicados nas pracinhas de futebol, em locais para as crianças brincarem, qual seria o impacto? Ninguém é contra o futebol, mas temos que nos questionar: esse é o melhor investimento que poderia ter sido feito?
Se você me disser que vão inaugurar mais 300 vagas de UTI, mas ao mesmo tempo faltam medicamentos nos postos de saúde… Qual investimento eu esperaria? Há medidas simples que podem ajudar muito, como o prontuário eletrônico.
Falta sensibilidade dos gestores?
Eu costumo brincar que, para matar pulga, você precisa de pressão de cima e pressão de baixo. Tem alguns gestores atentos, mas eles não encontram reflexo na população.
Outro dia, em Porto Alegre, vi uma avó contando que a filha antecipou o parto porque, se a criança nascesse no dia programado, que era 5 de abril, seria o centenário do Inter. E ela era gremista, não podia! São coisas absurdas.
A mãe acha que fazer cesárea é seguro, se houver algum problema a criança vai para a UTI, o obstetra fica numa situação confortável. Mas ninguém percebe que essa criança pode ter problemas no futuro. Isso precisa ser do conhecimento da mãe. Em sendo, essas mulheres passam a exigir dos médicos e do serviço de saúde uma atitude diferente.
O que mudou nesses 30 anos desde que a Pastoral da Criança foi criada?
Quando a Pastoral surgiu, era muito fácil salvar uma vida. Com água, sal e açúcar, você salvava metade das crianças do Brasil.
À medida que essa parte fácil foi sendo eliminada, os problemas começaram a ser um pouquinho mais complexos, de médio e longo prazos, e exigem muito mais capacitação. A gente brinca que a Pastoral da Criança é vítima do próprio sucesso.
A desnutrição é um problema superado no Brasil?
Sim. A desnutrição aguda não existe mais.
Quais são os desafios atuais? A obesidade infantil?
Esse é um deles. Nós ficamos extremamente alarmados com isso. No início do ano, na nossa primeira expansão do modelo de intervenção contra a obesidade, descobrimos que no interior do Paraíba havia quase o dobro de sobrepeso do que no Paraná. Mesmo com a pior seca de todos os tempos!
Ainda há uma mentalidade de que a criança gorda é uma criança saudável. Detectamos o uso em excesso de farinhas e açúcares, e também a falta de aleitamento materno. Além disso, no Brasil, os pobres são mais obesos que os ricos. Seja por uma dieta mais inadequada, mas principalmente pela falta de oportunidade de fazer um exercício, por falta de um espaço seguro. O rico, se quiser, vai para a academia de tênis, para o futebol, a piscina. O pobre não tem essa chance.
Vocês também lançaram uma campanha que aborda a prematuridade.
Sim. No Sul do país, há 20 anos, havia 7% de crianças prematuras. Hoje, estamos com 19%. Com isso, você tem uma sobrecarga no serviço de saúde. Cada vez temos mais UTIs pediátricas, que sempre estão lotadas.
Isso tem um efeito não só sobre a mortalidade imediata, mas também a de longo prazo. Essas crianças prematuras serão adultos com pressão alta, diabetes, obesidade, alto colesterol, problemas renais, infarto… Enfim, vão ser idosos frágeis.
Com isso, a Pastoral da Criança teve que mudar seu foco. Só a riqueza e o aumento da capacidade médica instalada não estão resolvendo os problemas de saúde do país. Então, nós refizemos nosso material, retomando questões básicas que a gente achou que já estavam superadas, como a importância do aleitamento materno e o controle pré-natal.
Há dois anos, a Pastoral tinha um déficit de R$ 1,4 milhão. Como está hoje?
Nós enxugamos algumas ações. Deixamos de fazer educação de jovens e adultos e de capacitar para serviços domésticos. A Pastoral precisa de foco. Também conseguimos novos doadores. Hoje, não temos déficit.
Da redação com O Globo