Sobre amores e brincadeiras infantis

Flávio Lúcio

Cocemos pelos amores. Na infância, quantos amores simultâneos nós tivemos e somos capazes de lembrar? Será que lembramos ainda do coraçãozinho em brasa, quando uma das tantas menininhas de nossa predileção, e escolhidas a dedo,se aproximava? De tão nervoso,eu só pensava no terror que causaria se a turbulência do coração revelasse em público meus amores secretos, que nem minha mãe sabia.

Lá pelos sete ou oito anos, eu tinha tantos amores que, para definir quem eu mais amava, cheguei a criar a imagem de uma competição de meninas, que aceleravam carros no autorama imaginário que eu desejava ganhar de presente e que, assim como aqueles amores, nunca me foi presenteado. E não carrego nenhum trauma por isso. Quando os objetos do meu amor me sorriam ou me olhavam com um olhar que eu considerava especial, em fantasiosas cumplicidades, a dona dele pulava imediatamente à frente naquela competição por um troféu que elas desconheciam, e que poderia muito ter o formato do meu coração.
O amor era uma brincadeira e eu amava brincando.
Brincadeiras reais

Naqueles anos, eu morava em Itaporanga, onde passei três dos mais felizes anos da minha infância. Quando em comparo hoje com a infância dos meus dois filhos, é inevitável não pensar no quanto eles deixarão de se divertir de verdade. Em meados dos anos 70, Itaporanga era uma cidade pequena, mas imensa para meu tamanho e minhas ideias de mundo. Eu morava com meus pais e mais quatro irmãos, na rua principal, a Getúlio Vargas, próximo da saída para Conceição e, portanto, próximo da fronteira onde as casas deixavam de existir para darem lugar ao mato da caatinga, para onde corríamos, eu e meus amigos, geralmente nas manhãs ensolaradas de sábado. No meio do mato, inventávamos brincadeiras, algumas inaceitáveis para a educação politicamente correta com que uma parcela significativa das crianças é educada hoje. Transformávamos fendas entre rochedos em cavernas, fazíamos “perigosas” armadilhas, brincávamos de faroeste com armas improvisadas em galhos de árvores; nos arranhávamos em meio às juremas em fugas tresloucadas; subíamos em árvores e competíamos para ver quem tinha coragem de ir mais alto.

Ainda hoje, carrego uma triste lembrança de uma das maiores malvadezas que cometi na minha vida: o apedrejamento de um camaleão até a morte, que, perseguido, resolveu se refugiar no alto de uma árvore. A vergonha de não ser corajoso o suficiente me fez participar daquela execução, que durou uns vinte minutos, até que o pobre bicho deixasse de ser verde para assumir uma coloração avermelhada de sangue e morresse pregado no tronco. Em outra “brincadeira”, numa guerra entre ruas, aprisionamos um inimigo e, depois de uma rápida conferencia, resolvemos amarrá-lo com cipó em um poste e açoitá-lo com chicote de folha de bananeira. O prisioneiro, depois de umas três chicotadas com a força de meninos de sete anos, foi salvo pela mãe, avisada que foi por outro “inimigo” que escapara. O pior de tudo: ela conhecia uma outra mãe, a minha,o me fez dormir com o “couro quente” e na proibição para sair de casa para brincar por outras duas infindáveis noites. Notem que eu só registro aqui aqueles eventos em que minha posição era dominante, porque das que fui vítima eu prefiro esquecer.

Mas, nem tudo era “violência”. Aliás, as brincadeiras citadas acima eram exceção num mundo onde a criatividade, a liberdade e a diversão predominavam: barra-bandeira, bila, pião, academia – mais conhecida como amarelinha, – queimada, mãe da rua, barra bandeira, e tantas quantas fossem possíveis e nossa disposição e número permitissem.

Ah, e quando era inverno! E quando chovia! Corríamos pelas ruas contras aquelas poderosas chuvas torrenciais sem medo de pegar gripe. Rolávamos pelas calçadas sem preocupação alguma com a higiene. Disputávamos o jorrar poderoso da água que caía das biqueiras das casas, algumas que pareciam ter sido construídas com esse objetivo. Acompanhávamos correndo os barquinhos improvisados nos leitos dos rios que se formavam nos pés das calçadas.

E o mato? Como ficava lindo ver aquela exuberante mudança de paisagem, contrastando com os tons de cinza dos dias chuvosos! Como era bom respirar aquele ar frio, puro, úmido. Mais formoso ainda era quando o sol aparecia nas manhãs, após noites inteiras de chuva. Corríamos, escondidos,para fora da cidade, para o desespero de minha mãe cujo maior medo era que um dos filhos se afogasse, em busca dos pequenos lagos que nós tínhamos certeza que haviam se formado e estavam lá, nos esperando para uma infindável diversão.

E como amávamos tudo aquilo, numa interação maravilhosa com uma natureza quase sempre hostil, quando imperava o sol causticante! Por isso, o sertanejo gosta tanto de chuva. Não é só pela dependência econômica, pela sobrevivência, mas pela transformação maravilhosa que ela provoca nos humores da paisagem. Quem está acostumado, como nos últimos meses, a ver aquelas imagens de uma natureza rústica, áspera, abrasiva, precisa visitar o sertão durante um inverno chuvoso. Vai ter uma surpresa.

Quando eu comecei a escrever esta coluna, tencionava tratar do modo de vida que levam as crianças nos grandes centros, como João Pessoa, verdadeiras prisioneiras de apartamentos, condomínios, escolas e shoppings, que buscam realizações virtuais para as incessantes fantasias que não param de brotar em suas mentes férteis. Mas, quando eu me lembrei desses dias felizes de minha infância, dos três anos de um mundo que desapareceu, achei que seria melhor abandonar a crítica para reviver os doces dias de um passado que morreu.

Talvez ele ainda exista, em outra cidade que tenha hoje o tamanho que Itaporanga teve há 40 anos. Por isso, eu recomendo aqui a qualquer juiz ou qualquer médico que tenham hoje a oportunidade de trabalhar nessas pequenas cidades: esqueçam de vocês e deixem seus filhos viverem essa aventura. Eles se lembrarão para sempre.