Na quarentena que me acometeu após a saída do Correio, sem ainda ter onde me manifestar publicamente, sempre que o assunto baixava em roda de papo ou alguém me perguntava, manifestava a minha expectativa quanto a um resultado positivo para o ex-governador Cássio Cunha Lima no Supremo Tribunal Federal (STF).
“Ele vai ganhar porque a Ficha Limpa vai perder”, dizia, amargando previamente a derrota de uma lei bacana, mas causando espanto naqueles que me vêem como opositor – e não crítico – de determinados expoentes políticos, Cássio com especialidade. E, por acharem que faço oposição e não análise política ou, pior, que minha crítica é serviço prestado ao adversário do criticado, soa estranho até mesmo uma previsão tão fácil de fazer.
Na má compreensão de alguns ou na má fé de uns poucos, eu deveria no mínimo torcer contra o Doutor Cássio, distorcer o meu próprio entendimento ou falseá-lo publicamente para justificar o estigma ou a fama de ser contra o cara, por questões pessoais ou – muito pior – por trabalhar para pretensos inimigos do ex-governador.
Bem, talvez até o próprio Cássio veja a coisa dessa maneira e igualmente deva se espantar mais ainda se eu disser, como disse tantas vezes a outras pessoas, incluindo amigos comuns, que considero a eleição dele para senador, ano passado, como a mais legítima e incontestável de todas as que ele disputou em toda a sua carreira.
Não me refiro tão somente à formidável quantidade de votos que o consagrou nas urnas de 2010, mas, sobretudo, ao fato de que dessa vez o Doutor Cássio não tinha por trás, a seu favor nem instrumentalizada a serviço de sua campanha, qualquer máquina pública de Estado ou de prefeitura, como ocorreu nos pleitos que o elegeram e reelegeram prefeito de Campina Grande, elegeram e reelegeram governador da Paraíba.
Não me venham dizer que não. Já trabalhei profissionalmente – não como jornalista, claro – em uma campanha municipal contra os Cunha Lima em Campina Grande e sei como é. Obstinados na construção e consolidação de seu projeto político, eles usam e abusam do poder que detêm em função dos cargos que ocupam. Na grande.
Na eleição de 2002, para governador, por exemplo, Cássio tinha as prefeituras de Campina e de João Pessoa na mão. Na Vila Nova da Rainha, o pessoal dele trabalhando a mil, com salários e instrumentos de que dispunham no governo local. Na Aldeia das Neves, o alcaide Cícero, popularidade em alta, fazendo de um tudo para eleger o então amigo de fé, irmão, camarada.
Se quiserem calcular de outro modo, penso que juntando com outras prefeituras que o apoiaram no embate contra Roberto Paulino, do PMDB, Cássio foi à luta com o mesmo poder de fogo do então governador. E não é só porque tinha os dois maiores colégios eleitorais da Paraíba a seu favor. Em outra conta, dá pra medir ou comparar se juntarmos os PIBs de Campina e da Capital e confrontarmos com o que sobra do Estado e do resto das prefeituras.
Resumindo: se, das vezes anteriores, o homem foi ampla e irrefutavelmente beneficiado pelas máquinas que comandava, em 2010 a sua votação foi consagradora, indiscutivelmente legitimadora de sua força política. Tanto foi que por conta disso relevo até o fato de que o seu milhão de votos deveu-se muito à maestria com que soube explorar o sentimento popular de que ele teria sido vítima de uma grande injustiça.
‘Injustiça’ cometida pela Justiça Eleitoral, diga-se, pois muita gente votou nele convencida de que o ex-governador foi punido por ter ajudado “quem mais precisava”, quando na verdade andou por aí distribuindo uns chequinhos vale-voto e usando jornal oficial, pago com dinheiro público, feito panfleto de campanha. Entre outras estripulias eleitorais.
Concluindo: abstraindo a frustração que foi a derrota da Ficha Limpa no Supremo para os cidadãos de bem do Brasil e da Paraíba, quem preza pelo respeito ao Estado Democrático de Direito tem que se render à decisão da Corte e aceitar as conseqüências daquele julgamento. Sob esse prisma, não há como resistir nem discutir: Cássio é Senador da República, por todos os títulos e méritos.
Não quer dizer, contudo…
Do ponto de vista da parte contrária, ou seja, da parte que atende pelo nome de Wilson Santiago, também por apreço ao mesmo Estado Democrático de Direito não há como negar que o ainda formalmente senador tem todo o direito de ir à Justiça tentar provar que Cássio era e continua inelegível, apesar de o Supremo ter decidido que a Ficha Limpa não se aplica às eleições de 2010.
Lendo com atenção, ontem, o texto original da chamada Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990), deu pra ver que a tese dos advogados de Wilson Santiago faz sentido. Pelo que entendi, o prazo da inelegibilidade (três anos) do Doutor Cássio – por ter sido cassado por abuso de poder político e econômico – deveria ser contado a partir de quando ele deixou o governo (em 17 de fevereiro de 2009) e não a partir da eleição (2006) em que ele cometeu os delitos eleitorais que levaram àquela baixa desonrosa.
É o que dá pra inferir clarividentemente da leitura da alínea ‘h’ do inciso I do artigo 1º da Lei 64/90. Que me perdoem os juristas se eu estiver dizendo besteira, mas ouso convidar os leitores a lerem comigo o que diz a lei. Vamos lá:
Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
…
h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político apurado em processo, com sentença transitada em julgado, para as eleições que se realizarem nos 3 (três) anos seguintes ao término do seu mandato ou do período de sua permanência no cargo;
Repetindo, agora com ênfase no que diz o trecho final do dispositivo: quem foi condenado por abuso de poder econômico ou político é inelegível “para as eleições que se realizarem nos 3 (três) anos seguintes ao término do seu mandato ou do período de sua permanência no cargo”. Prestem atenção: ao término do mandado ou do período de permanência no cargo. Não tem como ler diferente.
Em síntese, sob a lógica e a ótica da alínea ‘h’ do inciso I do art. 1º da Lei da Inelegibilidades, com ou sem Ficha Limpa o Doutor Cássio estaria inelegível desde 18 de fevereiro de 2009 e assim deveria ficar até um dia bem próximo da mesma data em fevereiro de 2012. E, por inelegibilidade, não poderia ter sido eleito em 2010.
De qualquer forma e sorte, apesar de ver procedência na tese dos advogados do Doutor Santiago, não acredito que ela prospere. Além de não ter efeito suspensivo, ou seja, além de não impedir a posse de Cássio no Senado, o recurso do peemedebista deve enfrentar um contraponto tão competente quanto, na Justiça, e o ex-governador deve ser mantido no cargo que lhe foi confiado por mais de um milhão de cidadãos paraibanos.