Seca, ontem e hoje

Flávio Lúcio

A Assembleia Legislativa promoveu ontem um ato político ao qual denominou de “SOS Seca” e reuniu, principalmente, parlamentares. E de todas as espécies e matizes. Muitos discursos foram proferidos e, como a seca só tem culpado, todos foram unânimes em responsabilizar o Governo Federal. Realizado numa segunda-feira na litorânea João Pessoa para dar mais repercussão e, claro, facilitar a presença da bancada parlamentar federal que vem à Capital para pegar seus voos para Brasília, o evento serviu, antes de tudo, para desresponsabilizar os políticos convidados diante da catástrofe socioeconômica que a seca produz com regularidade também cíclica.
Mais “obras” contra a seca?

O Senador Cássio Cunha Lima foi o mais enfático na crítica à Presidenta Dilma Rousseff, acusando-a de desconhecimento toda realidade do Semiárido nordestino e dos impactos da seca na economia da região. Do púlpito do luxuoso auditório do Hotel Tambaú que, para quem não sabe, não fica no Alto-Sertão, como bem notou o Padre Djacy Brasileiro, e protegido do calor pelo potente ar-condicionado, que ninguém é de ferro, Cunha Lima desceu a lenha na falta de ação do Governo Federal. E cobrou “obras estruturantes” para a Paraíba.
Ao escutar as palavras do, é bom lembrar, ex-Governador Cássio Cunha Lima, lembrei-me do quão recorrente é esse discurso em meio à elite política nordestina. E tão velho quanto a própria seca. Postular por “obras” como meio de enfrentamento das secas é algo que sai da boca dos grupos oligárquicos há décadas, numa enfadonha repetição que vem desde fins do século XIX. Ao nos defrontarmos novamente com esse discurso político simplificador, não é de todo inútil que perguntemos: será mesmo que os problemas socioeconômicos decorrentes da seca serão mesmo resolvidos com a construção de mais “obras”?

A obsessão por “obras” no Nordeste desses grupos oligárquicos foi (?) tão grande que o Governo Federal criou em 1911 a autarquia federal que seria conhecida como DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) e que, apesar de “nacional”, só teve atuação no Nordeste. Através do DNOCS, nenhuma região brasileira recebeu tantas construções de obras do que o Nordeste. Depois do primeiro açude público, no Ceará, construído ainda no Império, em 1886, mais de 200 outros grandes açudes– sem contar barragens e estradas de rodagem – brotaram por todo o Nordeste, que permitiram a região acumular, hoje, 37 bilhões de metros cúbicos de água. É água! Ou seja, o Nordeste tem muita água acumulada e é a região semiárida com maior capacidade hídrica do planeta. Então, vem a incômoda pergunta: mesmo depois de tantas “obras”, por que a cada nova seca, as velhas tragédias se repetem?

O Nordeste não é a Califórnia

A resposta a essa questão eu busquei depois que ouvi a entrevista do Deputado Estadual Trocoli Jr., concedida ao programa de rádio Polêmica Paraíba, da Paraíba FM. O deputado do PMDB, repercutindo o ato promovido pela Assembleia Legislativa, ao tratar da seca, abordou de uma maneira tal a questão que fez lembrar a velha autocomiseração nordestina, que é mais presente nos discursos políticos e no jornalismo, do que no meio do povo.

Tendo ao fundo os “hinos” de Luiz Gonzaga, tão pródigos desse sentimento, o deputado também cobrou ações estruturantes do Governo Federal, sem deixar de lembrar uma passagem gonzaguiana de uma música, apropriadamente chamada “Vozes da Seca”, e que enche a boca de muita gente, principalmente quando o assunto é o Bolsa Família: “Uma esmola para um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”. É bom não esquecer o contexto em que, atualmente, esses versos são usados: “esmola” é o Bolsa Família, e “vício” é a indisponibilidade do cidadão que participa do programa para o trabalho.

Entretanto, o que mais me chamou a atenção na entrevista do Deputado Estadual Troccoli Jr. foi quando ele comparou a situação econômica da Califórnia com o Nordeste. Enquanto parte daquele importante estado americano é um deserto, ou seja, é uma região “árida”, o Nordeste é “semiárido”. Mesmo assim, a Califórnia é o terceiro estado mais rico dos Estados Unidos. O que há de diferente entre uma realidade e outra? A construção de “obras estruturantes”, como cobrou o deputado peemedebista?

A comparação entre realidades históricas tão díspares é sempre um exercício perigoso porque corremos o risco da simplificação. Mas, eu não vou resistir e apresentar apenas um aspecto, que pode ser considerado a base de todo o desenvolvimento, não apenas da Califórnia, mas de todos os EUA, e que é um dos grandes fatores a distinguir o desenvolvimento americano do brasileiro. Enquanto que no Brasil,1,2% dos proprietários rurais detêm mais de 40% de toda a terra agricultável, esses mesmos 1,2% de proprietários nos Estados Unidos controlam apenas 11% dessas terras. Ou seja, o que torna tão frágil a estrutura socioeconômica do semiárido nordestino, que a faz desorganizar-se toda vez em que uma seca ocorre, é a concentração fundiária, associada a inexistência de políticas agrícolas para a região.

Exigir “obras” é a melhor maneira de fugir do problema, tanto aqui como em Brasília. E isso aproxima Cássio Cunha Lima de Dilma Rousseff.