Sábias lições de FHC

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Nonato Guedes

O ingresso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na Academia Brasileira de Letras engrandece a instituição. Antes de se tornar um agente político ativo, FHC notabilizou-se como intelectual, debruçado sobre os problemas do país e formulando interpretações sociológicas que de certa forma mantêm-se atualizadas. No livro “A Soma e o Resto”, editado para celebrar os 80 anos do ex-presidente, ele avalia com antecedência a emergência do novo que move a sociedade. “Não estamos repetindo o passado nem seguindo modelos de fora. Algo original está sendo gerado aqui e agora”, pontuou, no depoimento a Miguel Darcy, depois de constatar que a filiação aos sindicatos diminuiu muito e que os partidos políticos estavam em crise.

Fernando Henrique identificou o enfraquecimento de todas as antigas estruturas e observou que as pessoas estavam cada vez mais se conectando por sua própria iniciativa, independentemente da ordem preestabelecida. “As pessoas vão para a internet, entram no Facebook e têm amigos. Não é preciso perguntar se esses amigos são pobres ou ricos, qual a sua origem familiar, qual seu nível de escolaridade. Nada disso tem a importância que tinha antes. Vivemos numa sociedade em que o importante é compartilhar. Hoje, o grande divertimento dos jovens é contar o que fizeram. Uma família amiga minha foi para a Europa com os filhos. Esses, cada dia, antes de dormir, enviavam para seus amigos fotos de tudo que haviam visto e feito. No dia seguinte, acessavam o Facebook para ver qual a reação dos amigos”, analisou, de forma lúcida.

Ao emitir essas reflexões, Fernando Henrique alertou que não estava fazendo uma crítica, mas tentando descrever e entender a realidade que vigora. “É como se a fruição da vida passasse a ser, desse ponto de vista, mais coletiva. A privacidade que era o bem maior da sociedade dita burguesa, bem estabelecida, passa a ser uma coisa secundária. O que se quer é o contrário; que os outros saibam o que você está fazendo. Não se trata sequer de transparência que, no final das contas, é um mecanismo para se saber o que está certo e o que está errado. Aqui não tem certo e errado. ‘Eu sou isso, e estou fazendo isso’. No passado, o compartilhamento se dava por meio de estruturas organizadas, pertencimentos. Cada um tinha sido de tal ou qual colégio, tinha seu partido, seu sindicato. Hoje as associações continuam a existir, mas é possível para qualquer um saltar tudo isso. Saltar inclusive a nação, o país, na medida em que, virtualmente, é possível ter amigos no mundo inteiro”, prosseguiu.

Para ele, há significado, sim, nisso tudo, uma vez que estão sendo criados movimentos ou, pelo menos, predisposições anímicas e formas de socialização, de relacionamento de uns com os outros, muito diferentes dos que ocorriam no passado. “Correndo o risco de um certo pedantismo sociológico, o que era a ideia de “comunidade” no passado? Era viver uma mesma experiência, juntos, no mesmo momento. Encontrar o outro, face a face. Essa experiência bastava. Não era preciso o contrato. O contrato era a “sociedade”. Hoje, as experiências são compartilhadas à distância. Não sempre, claro. Mas com as novas tecnologias de comunicação, o espaço deixa de ser um obstáculo para que se possa compartilhar, “anytime”, “anywhere”. Criam-se comunidades virtuais. Isso é uma imensa novidade. No passado, comunidade, por definição, não podia ser virtual. Implicava o cara a cara”, explica o professor Cardoso.

Ele revela que, sociologicamente, na comunidade as relações são diretas. Na sociedade, não. É mais complexo, tem a divisão do trabalho, etc. Hoje existe a possibilidade de criar uma comunidade virtual que compartilha, ao mesmo tempo, uma mesma experiência, independente do espaço. Tudo se passa on-line. O fascinante, na visão de FHC, é que esse novo mundo coexiste com o mundo antigo. “O mundo em que vivemos hoje é isso e é o outro também. A interação entre a comunidade virtual e o mundo real é permanente. Essa complexidade que é imensa dificulta a mim e a qualquer um entender o que está acontecendo, para onde estamos indo”.

Cardoso conclui acentuando que a sociedade, ao contrário de ser unidimensional, como pensava Marcuse, guru dos movimentos de contestação dos anos 60, é uma sociedade pluridimensional, constituída por indivíduos que têm uma pluralidade de dimensões no seu ser social. Cada um se conecta e se desconecta o tempo todo, inclusive utilizando os mais variados modos de conexão. Ninguém age da mesma maneira o tempo todo. A juventude que está conectada na internet vai à escola, onde passa a ter relações face a face, conviver com regras. A sociedade que está emergindo é estranha e complexa. E a sensação de medo que se experimenta é uma reação diante do desconhecido. Sábias lições, FHC!