Novo Código Penal: Relator defende pauta liberal

fotoProcurador regional da República em São Paulo, mestre e doutor em Direito do Estado, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves é um severo crítico da legislação penal brasileira. “Parece receituário religioso sobre o comportamento das pessoas”, compara. “Olha para o passado e favorece a impunidade”, acrescenta. Durante sete meses, Luiz Carlos relatou a proposta de reforma do Código Penal elaborada por um eclético grupo de 12 juristas no Senado. A proposta foi entregue aos senadores em junho do ano passado e tramita numa comissão especial da Casa, onde é relatada agora pelo senador Pedro Taques (PDT-MT).

No período em que relatou o anteprojeto, Luiz Carlos foi acusado por críticos da reforma da legislação penal de ceder ao açodamento da presidência do Senado, de ter dialogado pouco com a comunidade acadêmica e de ter consolidado um texto impreciso tecnicamente e com desproporções nas penas. Críticas que ele refuta com veemência. A proposta produzida pela comissão de juristas é modernizante e descriminalizadora, segundo ele.

Na avaliação do procurador, o texto tem o mérito de “tirar o véu” de discussões polêmicas, como droga, aborto, liberdade sexual e eutanásia, e obrigar o Congresso a abrir o debate sobre esses assuntos. Além da “pauta liberal”, outro avanço do anteprojeto, na opinião dele, é o endurecimento no combate à corrupção.

A proposta elaborada pelos juristas reforça a punição para crimes mais violentos e contra a administração pública. Prevê, por exemplo, a responsabilização penal de empresas cujos diretores forem acusados de corrupção, punindo até com o fechamento do negócio. Também dificulta a possibilidade de o preso condenado por crimes mais graves de passar progressivamente do regime mais severo (fechado) para o mais brando (aberto). Torna crime, ainda, a discriminação por orientação sexual (homofobia) e procedência regional ou nacional.

Por outro lado, o texto descriminaliza o consumo e o plantio de drogas, amplia as hipóteses de aborto, permitindo a interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação caso a mãe não tenha condições psicológicas de arcar com a maternidade, permite o perdão judicial para a eutanásia, conforme o caso, e legaliza as casas de prostituição, desde que não haja exploração. Temas polêmicos que estão na pauta de uma comissão do Senado. “Eram temas tabus. O Congresso vai chegar a uma solução que lhe parecer própria”, defende Luiz Carlos. O atual relator, senador Pedro Taques, promete apresentar seu parecer até o final do ano. Veja a seguir a entrevista com o procurador da República:

Congresso em Foco – Que Brasil teremos caso a proposta de reforma do Código Penal elaborada pela comissão de juristas seja aprovada?
Luiz Carlos dos Santos Gonçalves – Um Brasil mais livre, com menos impunidade. O projeto deixa por mais tempo na prisão quem merece. Hoje existe muito faz de conta no direito brasileiro. O regime aberto de cumprimento de pena, na prática, é uma mentirinha. O poder público não construiu o aparato necessário para aplicar essas medidas. O Código Penal está cheio de falhas, olha para o passado e favorece a impunidade.

Quais são os principais avanços do projeto, na sua opinião?
Os principais acertos do anteprojeto do Código são relacionados aos crimes de corrupção. Trouxemos três medidas significativas: o aumento da pena mínima de dois para três anos, a previsão de crime de enriquecimento ilícito e a responsabilização da pessoa jurídica por crimes na administração pública. Surpreender a pessoa no ato de corrupção é muito difícil. É um crime às escuras, de difícil apuração e punição. Mas há outros avanços. O projeto teve coragens que a legislação brasileira não teve.

Quais, por exemplo?
O projeto tem compromisso com a modernidade. A lei penal brasileira de hoje parece receituário religioso sobre o comportamento das pessoas. Parece criado para a moralidade dos anos 1940. Trouxemos a descriminalização da casa de prostituição, a não ser que haja exploração. A lei é hipócrita. Temos uma pauta liberal em relação à eutanásia, ao aborto e ao consumo de drogas. O fato de estarmos trazendo a discussão é a grande novidade. Eram temas tabus. O Congresso vai chegar a uma solução que lhe parecer própria. Fizemos o papel de tirar o véu.

A proposta da comissão pode ajudar a reduzir a criminalidade?
Por melhor que seja, uma lei sozinha não afeta a criminalidade. Posso ter a melhor lei do mundo, mas se a polícia e o Ministério Público não estiverem aparelhados, se o Judiciário não for rápido, se o número de recursos não for reduzido, não muda nada. A lei pretende algo mais modesto, que é contribuir para a melhoria.

Há risco de a proposta agravar a superlotação do sistema penitenciário ao manter presos por mais tempo na cadeia, como temem alguns críticos?
O problema carcerário é de infraestrutura. O Brasil precisa de melhores estradas, escolas, portos, aeroportos e estabelecimentos penitenciários. Não haverá maior encarceramento, mas um encarceramento diferente. A proposta aumenta o tempo de permanência no cárcere das pessoas que praticaram crimes mais graves. O projeto tem a preocupação em descarcerizar a criminalidade de baixo potencial ofensivo, reduzindo a pena do furto e descriminalizando o uso de drogas. É um projeto descriminalizador.

A população carcerária brasileira cresceu seis vezes desde 1990. Mas os crimes só aumentaram nesse período. Prisão não inibe a criminalidade?
A população carcerária cresceu, mas não de maneira suficiente. Se todos os mandados que aguardam cumprimento fossem executados, haveria mais 200 mil pessoas no sistema carcerário. Cresceu muito porque aumentou a prática de crimes. O Brasil prende mal. O projeto procura prender melhor.

Tornar crime o bullying, por exemplo, não vai na contramão desse caráter descriminalizador?
Direito penal não é solução para tudo. Perto da descriminalização que a gente fez, a criminalização foi residual. Tem gente que acha que se resolve o problema do bullying sem envolver o direito penal. Hoje se joga toda a responsabilidade para a escola. Mas ela não tem estrutura para resolver. A criminalização pode ajudar. O projeto é muito preocupado em proteger a vítima, que é a grande injustiçada do sistema penal brasileiro.

O professor Renê Dotti alega que deixou a comissão por ela ter sido pautada pela imprensa e pelo marketing do Senado, e por não ter aprofundado a discussão acadêmica. Houve isso?
Ele ficou quatro meses na comissão. Era o relator da parte geral, talvez a mais importante do projeto. Poderia ter chamado os pares acadêmicos à comissão, mas não o fez. Concordo com ele na crítica e a dirijo a ele próprio. Você não pode fazer reforma penal em 2013 às escondidas, juntar uma equipe de sábios a portas fechadas e entregar para a sociedade o fruto da sua sabedoria. Tudo tem de ser exposto de maneira transparente. Reforma às escondidas, só no tempo da ditadura.

Há risco de insegurança jurídica com essa proposta, como apontam alguns críticos?
Insegurança jurídica nós temos com o Código Penal de hoje. Quem fez o Código de hoje não foi capaz de distinguir dolo e culpa, que são lições primárias do direito penal. Se o sujeito atropela, dependendo do lugar, vai responder por homicídio culposo; dependendo, vai responder por até 30 anos de cadeia.

Há críticas em relação ao fim do livramento condicional, proposto pelo projeto. Qual a vantagem de acabar com esse benefício do preso?
A gente entendeu que o livramento condicional estava mordendo o mesmo espaço da progressão de regime, só que ela é muito superior. Na progressão, o preso vai do regime mais severo para o mais brando. O projeto aumentou o lapso para a progressão de regime dos crimes violentos ou de grave ameaça. Hoje, no livramento condicional, o cara está na penitenciária e amanhã está na rua. Essa solução de ir devolvendo a pessoa à sociedade gradualmente me parece mais interessante. Não vai superlotar os presídios.

Como o senhor define o projeto do ponto de vista ideológico? Tem viés conservador e liberal ao mesmo tempo?
É um projeto de marca liberal do começo ao fim. Mas preocupado com a questão da defesa da sociedade contra a impunidade. Ele foi liberal até o ponto em que a solução reclamava solução contrária. O projeto não tem linha única. Ele foi construído com diálogos na busca de um consenso. Não foi monólogo. As penas aumentadas pelo projeto são raríssimas.  No geral, ele as diminui.