Reforma política não é golpe

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José Dirceu

Volto ao complexo e controverso tema da reforma política — ao qual me dediquei neste mesmo espaço na semana passada — para, desta vez, rebater as críticas feitas pelo ex-governador José Serra à proposta defendida pelo PT, elaborada pelo relator do principal projeto sobre o assunto na Câmara, deputado Henrique Fontana (PT-RS).

Em artigo publicado no dia 11 de abril, no jornal o Estado de S. Paulo, sob o título “Reforma ou golpe?”, o tucano, dedicado menos em esclarecer suas posições sobre o tema e mais em atacar as de seus adversários, classifica de “golpe” as proposições apresentadas pelo PT e por Fontana para pôr fim a uma série de distorções do atual sistema político-partidário brasileiro.

Empenhado na realização do projeto há alguns anos, Fontana procurou o Estadão para apresentar seus argumentos. Contudo, o jornal tratou de forma diferenciada as duas posições e recusou o debate proposto por Fontana no mesmo espaço conferido a Serra.

O que parece ser uma opção editorial se configurou em uma grande oportunidade perdida pelo jornal para colaborar com a discussão de um assunto fundamental ao aperfeiçoamento democrático em nosso país.

De todo modo, as críticas de Serra ao projeto do PT e de Fontana seriam bem-vindas se, na contrapartida, trouxessem alternativas para os principais itens que defendemos, como o financiamento público das campanhas eleitorais, o voto em lista flexível e o fim das coligações proporcionais, dentre outros que visam valorizar o embate programático em detrimento do poder econômico e de arranjos casuístas nas eleições.

Mas, em tom arrogante e autoritário, Serra dedica-se apenas a desqualificar nossas propostas, classificando-as do início ao fim de “golpistas”.

O ex-governador estranhamente diz em seu texto que o PT pretendia “enfiar a reforma goela abaixo do país”, já que não houve debate a respeito.

Não houve debate? Como não, se a reforma está em discussão no Congresso há mais de 15 anos e se o projeto apresentado pelo PT é fruto de amplas discussões com diferentes setores da sociedade, tendo sido discutido também com todas as bancadas dos partidos políticos, por mais de uma vez? Sejamos razoáveis: não é porque Serra não participou do debate que ele não aconteceu.

O presidenciável critica de forma contundente a ideia do financiamento público exclusivo de campanha, sob o argumento falacioso, e também já bastante ultrapassado, de que ela oneraria o cidadão. Como bem colocou o deputado Fontana em resposta na Internet, Serra deveria esclarecer à população que hoje ela já paga pelos recursos das campanhas bilionárias que o projeto do PT visa baratear.

Os números evidenciam o crescente peso do poder econômico nas campanhas eleitorais. Em 2002, os gastos declarados por partidos e candidatos nas campanhas para deputado federal alcançaram R$ 189,6 milhões; em 2010, esse valor chegou ao montante de R$ 908,2 milhões, um crescimento de 479% em oito anos. Com maior intensidade, os gastos declarados nas campanhas presidenciais passaram de R$ 94 milhões, em 2002, para R$ 590 milhões, em 2010, um crescimento de 628% em oito anos.

Além disso, não há dúvidas de que o investimento feito pelos grandes financiadores nas eleições é cobrado tanto na exigência de relações privilegiadas, quanto no preço final de obras que são pagas com os recursos do contribuinte. Esse, sim, é o grande golpe praticado pelo modelo vigente.

Embora José Serra diga que “uma reforma política de verdade procuraria aperfeiçoar o mecanismo de representação, aproximando mais o eleito do eleitor”, nega-se a enxergar que, no sistema atual, apenas os candidatos que contam com generoso apoio de empresas privadas — as 72 grandes empresas que contribuíram com um bilhão de reais nas eleições de 2010 — têm chances efetivas de vencer uma eleição, o que exclui do páreo eleitoral muitos líderes populares, legítimos representantes da população, incapazes de competir com campanhas milionárias.

Já a argumentação de Serra de que, ao levar em conta a representação na Câmara dos Deputados e o volume de votos obtidos na eleição anterior, a distribuição dos recursos para o financiamento público beneficiaria o PT, não sei se é uma crítica ou o reconhecimento de que o partido é o único que continua crescendo no Brasil. Nunca é demais lembrar que o número de votos e de deputados é, de fato, o melhor fator para auferir representação e que as conquistas do PT vêm sendo obtidas no contexto das regras vigentes.

Por fim, depois de defender ao longo do texto a continuidade do financiamento da democracia brasileira pelos grandes grupos econômicos, o tucano apresenta sua única proposta de reforma política — o voto distrital — que, conforme podemos perceber pelos exemplos vindos de fora, transforma a eleição em uma disputa entre dois nomes, diminuindo o papel dos partidos e das propostas.

Para adoção do voto distrital, seria necessária a aprovação de emenda constitucional, já que o modelo institui o sistema majoritário, contrário a toda experiência brasileira de voto proporcional.

O sistema distrital não contribui para o aprimoramento da democracia representativa; ao contrário, com ele há o risco de que as minorias desapareçam, ficando espalhadas em diferentes distritos, sem conseguir eleger representantes. Além disso, o modelo mostra-se bastante complexo, pois exige a reformulação dos distritos de tempos em tempos, devido às modificações populacionais — óbitos, nascimentos e mudanças de residência.

Como frisou Fontana, esse debate não é propriedade de nenhum partido e os problemas do nosso modelo de financiamento aparecerão com força revigorada nas eleições de 2014, se nada for mudado. Assim, ganharemos todos se, ao invés de desqualificarem as propostas em discussão, os líderes políticos realmente interessados em tornar o sistema político mais justo e democrático se unirem para encontrar uma maneira mais adequada para financiar as campanhas eleitorais no Brasil.

Outra saída, caso o Congresso não consiga entendimento para votar as atuais propostas, é a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva para a realização da reforma política, ou ainda de um plebiscito através do qual a população seja consultada sobre os pontos mais prementes dessas mudanças.

A Constituinte exclusiva poderia ser convocada para a eleição do ano que vem, quando os eleitores já escolheriam também os deputados constituintes, e teria o mérito de aperfeiçoar uma série de mudanças e de atualizar leis que vigoram no país há 25 anos.

São propostas para não deixar a reforma política, mais uma vez, sem desfecho, como desejam aqueles a quem só interessa manter tudo como está.

José Dirceu, 67, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT.