Recorde de crueldade

Rubens Nóbrega

O projeto de poder de Ricardo Coutinho repousa sobre a lógica de que ele deve governar para 3 milhões de paraibanos e não para “cento e poucos mil funcionários”. Daí por que ele precisa, entre outras medidas duras, ‘enxugar a máquina’. Significa fazer valer na prática o velho chavão neoliberal que penaliza direitos, vantagens e conquistas – inclusive as obtidas judicialmente – dos servidores estaduais.

Obcecado por livrar a tal máquina de encargos que considera improdutivos porque só beneficiariam o que tem na conta de pequena parcela da população, ou seja, a dos barnabés do Estado, o Ricardus I tenta raspar até o osso os gastos com pessoal para se concentrar no investimento em obras que renderiam votos e apoio de quem, supõe, não depende do poder público.

Ocorre que boa parcela dos 3 milhões para o qual o monarca diz trabalhar depende sim, e muito, dos “cento e poucos mil funcionários” que ele já deve ter dado como eleitores ‘perdidos’. Porque os 3 milhões precisam de serviços públicos com alguma qualidade, coisa que não se consegue massacrando a suposta minoria que presta esses serviços.

Como prestar serviços de qualidade na educação aos 3 milhões se esse governo achata a remuneração do magistério estadual, artificializa o pagamento do piso nacional, fecha escolas e o diálogo com a categoria, confisca gratificações e, se não bastasse, vive às voltas com denúncias de escandalosos superfaturamentos nas compras de material escolar?

Como prestar serviços de qualidade na saúde pública aos 3 milhões se esse governo vive em permanente confronto com os médicos do quadro permanente ou contratados como prestadores de serviço ou através de cooperativas, reprimindo-lhes os movimentos reivindicatórios através de terceirizações milionárias que precarizam relações de trabalho e maquiam resolutividade?

Como prestar serviços de qualidade na segurança pública aos 3 milhões se a sensação de insegurança cresce na mesma proporção do iRC, o índice de Requintes de Crueldade com que o Ricardus I trata os policiais militares e civis, que para sobreviver à remuneração ridícula têm que se valer de bicos ou, então, agarrarem-se aos penduricalhos no contracheque e adjutórios risíveis?

Fiquemos apenas nessas três principais funções de governo, obrigações de Estado. Se analisarmos outras atividades (programas sociais, defesa agropecuária, assistência comunitária, transparência de gestão etc.) aí a coisa pode piorar um bocado. Não cabe num artigo. Limitado pelo espaço que me cabe e pelo tempo de feitura e entrega do escrito diário, análise e exposição do tema conseguem, no máximo, pegar de raspão no xis da questão, mas serve para escancarar um pouco quão largo está o fosso que o governo girassolaico vem cavando entre ele e o funcionalismo e, a partir deste, entre ele e o conjunto da sociedade.

Na sua batalha messiânica para se impor como o diferente (quando consegue, com muito esforço, ser ruim ou perverso), o Ricardus I não se acanha sequer de tentar judicialmente acabar com um bem já secular de determinado segmento do serviço público estadual. E, para efeito de exemplo, retorno ao caso do tratamento dispensado pelo governo à Polícia, mais especificamente à Polícia Militar.

Retorno à PM para dizer que o soberano estaria tentando levar até a última instância a possibilidade jurídica de extinguir a promoção automática dos policiais militares, talvez a única possibilidade que as patentes inferiores a coronel – o posto mais alto da carreira – têm de uma reforma menos angustiante, financeiramente falando.

A promoção automática permite subir à patente imediatamente superior àqueles reformados por idade, tempo de serviço ou, desgraçadamente, algum acidente de trabalho. Em geral, acidente do tipo que quando não mata, aleija. Mesmo assim, o Ricardus I estaria empenhado em acabar com mais esse benefício e sem ele, sem o cabo se ‘aposentar’ como terceiro sargento ou o tenente vestir o pijama como capitão, o ex-membro da Briosa perderá pelo menos 40% do que ganha atualmente se passar à reserva sob o padrão remuneratório do imperador.

Quem trata disso com propriedade é o coronel Maquir Cordeiro, presidente da Caixa Beneficente da PM, de quem ouvi essa triste história na última semana, quando ele contava aos ouvintes do programa Paraíba Agora (Paraíba FM) o horizonte sombrio que aguarda seus companheiros em vias de reforma.

Por conta disso, exemplificou Maquir, se um policial sabe que em tal canto está havendo um tiroteio ele pensa mil vezes antes de chegar junto e intervir para acabar com a violência. Faz todo sentido do mundo. Afinal, quem é doido de levar um tiro, ficar paraplégico, em cima de uma cadeira de rodas, e ser mandado pra casa para sobreviver à custa de um salário que não chega a 60% do que ganharia na ativa?

De modo que atentem todos e todas, como diria a vereadora Sandra Marrocos, para a gravidade daquilo a que estaria se propondo e perseguindo o Ricardus I: aplicar aos ‘aposentandos’ e aposentáveis da PM o mais alto iRC. Se conseguir, estará batendo um recorde de crueldade. Não só com a Polícia, mas com toda a população.

Por essas e outras, é como diz uma grande amiga: “Ele está muito enganado. Não se dá conta de que de cada um dos 170 mil funcionários estaduais, entre ativos e inativos, dependem pelo menos cinco pessoas diretamente e outras dez, indiretamente. É só fazer a conta. É impossível num Estado pobre como o nosso não existir em cada família pelo menos uma pessoa que não tenha alguma ligação, afetiva ou econômica, que seja, com algum funcionário público. E esse povo, que soma mais de um milhão, está contando os dias para chegar o dia de acertar as contas com Ricardo nas urnas”.