A maioria delas é negra, pobre, tem filhos, não chegou ao ensino superior e não tem antecedente criminal. Para abortar, algumas usaram remédio, outras chás e até cesariana improvisada; umas fizeram sozinhas no banheiro de casa, outras tiveram complicações e precisaram ser levadas para hospitais públicos. Este é o “rosto” da mulher que responde na Justiça pelo crime de aborto no estado do Rio, segundo levantamento da Defensoria Pública entre 2005 e 2017.
Elas formam um grupo restrito: ao longo desses 12 anos, apenas 42 foram identificadas. O número é ínfimo perto dos 503 mil abortos clandestinos feitos por ano no país, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto.
— Quem chega na ponta do sistema criminal é o “funil do funil” — diz Carolina Haber, pesquisadora responsável pelo levantamento na Defensoria. — É uma lei que criminaliza somente as mulheres mais vulneráveis, sem recursos ou a quem recorrer. É uma dor solitária.
Os relatos dessas mulheres, que constam no levantamento, evidenciam o desespero: “Tomei diversos chás caseiros, apertava a barriga com cinta e dava socos em mim mesma”, diz uma das criminalizadas, que é negra, casada e tinha 33 anos quando foi detida.
Segundo a pesquisa, 55% são negras, 70% já são mães e 75% das que fizeram aborto sozinhas, sem ir a clínicas, estavam com mais de 12 semanas de gestação — quando não se pode mais fazer o procedimento de forma segura.
Pouco mais de 30% dessas mulheres que respondem na Justiça do Riopela prática foram denunciadas pelos próprios profissionais de saúde que as atenderam, o que fere o sigilo entre agente de saúde e paciente.
No país, 18 estados registraram 331 processos por autoaborto em 2017, segundo pesquisa nos Tribunais de Justiça feita pelo Portal Catarinas em parceria com a GHS Brasil.
DISCUSSÃO RETORNA AO STF
O tema voltará à tona no Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima sexta-feira, quando acontece uma das duas audiências públicas convocadas pela corte. A discussão é provocada por uma ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ação é de autoria do PSOL e do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
— O Brasil disputa o 1º lugar do mundo em população carcerária. Aumentaríamos em mais de dez vezes esse número se encarcerássemos todas as mulheres que fizeram aborto — diz a advogada Gabriela Rondon, do Instituto Anis. — Queremos que todas essas mulheres estejam na cadeia?
A prática de interrupção da gravidez prevê pena de um a três anos de detenção tanto para as mulheres que provocam aborto em si mesmas, quanto para as que consentem que outra pessoa o faça, de acordo com o artigo 124 do Código Penal. Os únicos três casos em que o aborto é considerado legal são se ele é feito em decorrência de estupro, de risco de vida para a gestante e de feto com anencefalia. Em qualquer outra situação, cabe processo penal.
Pela conduta, as mulheres podem até ser submetidas ao Tribunal do Júri — que, além de aborto, julga basicamente casos de homicídio. No caso das 42 mulheres criminalizadas no Rio, nenhuma tinha antecedente criminal, o que tornou possível que elas respondessem em liberdade e não chegassem a júri popular.
— O processo delas teve suspensão condicional, por falta de antecedentes. A partir daí, elas tinham que comparecer ao cartório a cada dois meses, por dois anos. Se não responderem nenhum novo processo pelos cinco anos seguintes, terão a ficha criminal apagada — explica Carolina Haber.
GASTOS DOS SUS COM COMPLICAÇÕES PASSAM DOS R$ 400 MILHÕES
A advogada Gabriela Rondon destaca que, também pelo fato de a pena ser baixa — de um a três anos —, a prisão pode ser substituída por prestação de serviços ou outras formas de punição. O maior perigo, ela destaca, a mulher sofre antes mesmo de ser indiciada:
— Na verdade, os efeitos da existência desse crime são muito anteriores ao processo penal em si. Os maiores riscos a mulher sofre antes, ao submeter à possibilidade de morrer.
Calcula-se que, no Brasil, a cada minuto, uma mulher interrompe voluntariamente a gravidez, segundo a Pesquisa nacional do Aborto. A historiadora Giovana Xavier ressalta ainda um dado do Sistema de Morbidade Hospitalar do Ministério da Saúde: em 2016, houve 195.860 casos de internação por consequências de aborto. Destes, 62.4% envolveram mulheres negras.
— Esse dado, assim como outros relacionados ao atendimento desigual para mulheres negras e brancas no Sistema Único de Saúde, como o fato de as negras esperarem mais e muitas vezes não receberem anestesia, evidenciam o óbvio — diz Giovana, que é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). — A história dos direitos reprodutivos de cada mulher está ligada à sua condição de raça, de classe, de sexualidade.
Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, entre 2008 e 2017, o SUS gastou R$ 486 milhões para tratar mulheres internadas após complicações de aborto — 75% deles provocados.
Fonte: O Globo
Créditos: ANA PAULA BLOWER e CLARISSA PAINS