Quem mexeu no livro?

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Nonato Guedes

Filiado ao Partido Comunista, pelo qual chegou a ser candidato a deputado federal, o escritor alagoano Graciliano Ramos, falecido em 1953, nunca permitiu que questões partidárias interferissem em sua literatura. Essa atitude independente, presente em cada um dos seus livros, como mostra reportagem da revista “Época”, assinada por Marcelo Bortoloti, é o mote central dos debates da Festa Literária de Paraty, que acontece no próximo mês e homenageará Graciliano com mesas de discussão e de leituras. O tema também põe em evidência uma polêmica antiga, que manchou a trajetória de uma de suas obras mais importantes, “Memórias do Cárcere”.

Desde que foi lançado, pesa sobre o livro a acusação de ter sido adulterado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Uma denúncia que nunca foi comprovada completamente mas ainda hoje ecoa até nos meios acadêmicos. Até que ponto “Memórias do Cárcere” seria um texto legítimo? É uma zona de sombra que se procura desvendar, pela necessidade de fidelidade aos registros históricos. O livro foi publicado no final de 1953, oito meses depois da morte de Graciliano. Ele apresenta um relato contundente, em que descreve o período de um ano que passou encarcerado pela ditadura de Getúlio Vargas, de março de 1936 a janeiro de 1937. Mantém sua independência e visão crítica da realidade. Por esse motivo, a acusação de que o partido teve acesso aos originais, trocou adjetivos e suavizou passagens controversas foi inicialmente recebida com descrença.

A insistência com que a denúncia foi levantada semeou a dúvida no meio literário. Como conseqüência mais desastrosa, provocou também um racha na família de Graciliano, com uma briga pública entre a filha Clara Ramos e o filho Ricardo, responsável pela publicação do livro. Eles morreram sem se falar. Nas últimas três semanas, com a ajuda dos professores Vanda Cunha Nery, da Universidade Federal de Uberlândia, e Godofredo de Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do pesquisador Thiago Mio Salla, da Universidade de São Paulo, a revista “Época” mergulhou nos originais de “Memórias do Cárcere” para colocar um ponto final no caso. O que se revela é que Graciliano deixou quatro versões para a obra e aprovou a versão final, contendo crítica ao Partido Comunista.

O livro tinha importância para os comunistas, já que deveria ser uma obra-chave sobre a Intentona Comunista de 1935, que malogrou. Após a morte de “Graça”, como era chamado o Mestre, noticiou-se visita de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB, à sua família. Astrojildo alegava que por se tratar de obra política, o livro precisava da aprovação da cúpula do PCB, que faria eventuais mudanças e supressões. A família não concordou. Os comunistas já haviam lido alguns capítulos, publicados em jornais, e estavam indóceis. Agildo Barata, um dos líderes do Partidão, achou ridículo ser retratado como um sujeito baixinho e de fala fina. Também não havia o tom de manifesto político que os comunistas esperavam, mas um mergulho profundo no drama humano de pessoas confinadas em condições adversas.

Graciliano não sabia bater à máquina, e os originais entregues à editora estavam datilografados. Houve a suspeita de que o partido ajudara nessa tarefa, aproveitando para corrigir o texto a seu talante. O livro foi lançado meses depois pela editora José Olympio, ilustrado com imagens de sete páginas manuscritas por Graciliano. Esses manuscritos aguçaram a curiosidade do crítico literário Wilson Martins, que teve a ideia de compará-los com os capítulos impressos. Martins, conforme a reportagem, percebeu que havia diferenças e, num artigo publicado um mês depois da primeira edição, no jornal “O Estado de São Paulo”, acendeu o debate. “Infelizmente estas memórias, na edição atual, não merecem confiança”, detonou.

A conclusão? Segundo “Época”, Wilson Martins e Clara Ramos foram induzidos a erro porque a imagem dos manuscritos destinados à imprensa foi publicada na primeira edição da José Olympio como se fossem de originais do livro. A denúncia ganhou força diante do histórico de orientação ideológica e controle que o PCB exercia sobre seus autores. “Era uma polêmica antiga, mas que nunca teve um desfecho”, diz Godofredo de Oliveira, o professor da UFRJ. Ao completar 60 anos, a história, aparentemente, ganhou seu ponto final. Ganhou mesmo?