Chove a cântaros em Boston, e o filósofo já tinha advertido que o temporal obrigaria a remarcar a entrevista a ser feita no jardim da sua casa, evitando os espaços fechados por prevenção contra o coronavírus. Como as manhãs do professor são ocupadas pelas aulas virtuais, a tarefa de buscar um lugar alternativo, que seja aberto, porém coberto, recai sobre o jornalista, que não tem ideia melhor do que convocar Michael J. Sandel (Minneapolis, 1953) à desenxabida bancada de concreto sob a imponente rampa que Le Corbusier concebeu para o único edifício que desenhou na América do Norte, ocupado pelo Centro Carpenter para as Artes Visuais da Universidade Harvard. Sandel ― famoso por seu estilo socrático de questionar as ideias pré-concebidas de suas audiências, que incluem o restrito corpo discente desta universidade, mas também milhões de espectadores que assistem às suas aulas magnas sobre justiça no YouTube ― considera a sugestão “uma boa ideia”. “É evocativo, de uma maneira inquietante”, opina.
Mais inquietante que evocativa será a leitura de seu novo livro (A tirania do mérito, Editora Civilização Brasileira, lançamento previsto para o final de setembro). para os gurus da política progressista das últimas décadas, acusados por Sandel de abraçar, como resposta aos desafios da globalização, uma cultura do mérito que levou a um legítimo ressentimento das classes trabalhadoras, de desastrosas consequências que se puseram de manifesto, inclusive, na gestão desta pandemia. Em The Tyranny of Merit, o ganhador do prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2018 defende que as crescentes desigualdades e o funil da mobilidade social transformaram em uma armadilha o mantra de que todo mundo pode vencer se tentar. A cultura da meritocracia, argumenta o professor, gerou uma arrogância entre os ganhadores e impôs um severo julgamento dos que ficaram para trás, cuja frustração e ressentimento alimentaram a onda global de protesto populista que levou Donald Trump ao poder. Sandel propõe uma revisão dos conceitos de sucesso e fracasso, um exercício de humildade que passa por “furar as bolhas” de uma sociedade polarizada para criar “uma experiência democrática compartilhada”.
O professor, cuja popularidade global o transformou numa espécie de rock star do pensamento, comparece com uma máscara de motivos orientais e ostenta uma amabilidade e uma proximidade que abrandam até o concreto de Le Corbusier.
Pergunta. Você defende que não estávamos moralmente preparados para a pandemia. Por quê?
Resposta. Porque chegou num momento de divisão e polarização quase sem precedentes. Chegou após quatro décadas de globalização neoliberal, guiada pelo mercado, que trouxe enormes desigualdades e também atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso que geraram uma profunda divisão entre vencedores e perdedores. Uma pandemia salienta nossa dependência mútua e exige um alto nível de solidariedade social. Mas essas profundas divisões nos tornaram incapazes de apresentar o tipo de solidariedade que teria sido necessária para enfrentar a pandemia de maneira eficaz. No princípio se repetia o bordão de “estamos juntos nesta”. Mas não era bem assim. À medida que o vírus avançava, ia ficando cada vez mais claro que aqueles que suportavam as cargas mais pesadas e realizavam os maiores sacrifícios, e que sofriam mais perdas de vidas, eram aqueles que tinham sido deixados para trás na prosperidade das últimas quatro décadas.
P. Os vendedores da globalização já tinham posto em prática o seu próprio distanciamento social…
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R. Pois é. Essa distância social anterior à pandemia consistia na tendência dos vencedores da globalização a se distanciarem da vida em comum, dos serviços públicos, dos espaços comuns da cidadania democrática. Havia cada vez menos experiência de mistura de classes no curso ordinário da vida, seja na escola, no transporte público, nas instituições culturais, os centros de lazer.
P. Esse modelo de globalização neoliberal, diz você, é o que alimenta o ressentimento contra as elites que está na base do trumpismo e de outros fenômenos populistas recentes. Mas, para compreendê-los melhor, é mais importante ainda o fato de que as elites deram as costas a quem ficou para trás. Em que sentido?
R. A mudança de atitudes é tão importante como a desigualdade de riqueza em si mesma. Aqueles que aterrissaram lá em cima tendem a acreditar que seu sucesso é graças a si mesmos. Que merecem, portanto, os benefícios materiais que a sociedade de mercado distribui entre aqueles que fazem sucesso. E, consequentemente, que quem ficou para trás merece igualmente seu destino. Esse senso de menosprezo por parte das elites gerou, compreensivelmente, indignação e ressentimento entre os trabalhadores. Essas queixas eram legítimas, apesar de os políticos que apelaram a elas terem jogado com os piores impulsos. Impulsos tão feios como a xenofobia, o hipernacionalismo e, no caso de Trump, o racismo. Essa feiura da reivindicação de Trump e outros pode nos impedir de reconhecer que as queixas às quais apelam são de fato legítimas.
P. Os partidos tradicionais, particularmente de centro-esquerda, foram incapazes de se conectar com essa ansiedade legítima?
R. Esse descontentamento lhes escapou, essa dimensão cultural da indignação. Foram surdos à insatisfação e ao crescente ressentimento dos trabalhadores. Acharam que o único problema da globalização era a deficiente distribuição das recompensas dos ganhadores aos perdedores. Mas não era sozinho um problema de justiça e redistribuição: era também um problema de reconhecimento e estima social.
P. A meritocracia carregava um insulto implícito…
R. Parecia uma ideia inspiradora: numa sociedade global, aqueles que fazem sucesso são os que obtêm um diploma universitário e se equipam para competir e vencer na economia global. Mas a ênfase constante na ascensão individual através da educação superior tinha um insulto implícito: se você não tiver obtido um diploma universitário e se não tiver prosperado na nova economia, seu fracasso é culpa sua. Não há ninguém a quem culpar exceto a você mesmo. Os partidos de centro-esquerda, claro, não apresentaram a questão nesses termos. Mas essa era a mensagem que enviava sua ênfase convicta na mobilidade individual através do ensino superior. Esse enfoque esquece o fato de que, nos Estados Unidos, quase dois terços dos adultos não têm uma graduação. Os partidos de centro-esquerda não perceberam esse insulto implícito e estão pagando o preço por isso.
P. Esse desdém pelos menos educados é o último preconceito aceitável?
R. Não acredito que seja justificável que digam que são mais vítimas de discriminação que os afro-americanos, por exemplo, que continuam lutando contra um legado de racismo e segregação. Mas há um sentimento entre os homens brancos de classes trabalhadoras de que já não são respeitados pela sociedade.
P. “Os deploráveis”, nas palavras de Hillary Clinton…
R. Exato. Dizer isso foi um profundo erro. É importante para os progressistas distinguir entre Trump, que é certamente deplorável, e muitas das pessoas que votam nele expressando ressentimentos que têm uma base legítima. Muitos deles votaram duas vezes em [Barack] Obama antes de votar em Trump, porque no princípio parecia que Obama estava oferecendo uma alternativa à política habitual.
P. Por onde começar a repensar o significado do sucesso?
R. Em um âmbito cultural. De atitudes, não de políticas. Os bem-sucedidos devem se perguntar se é verdade que seu sucesso é atribuível inteiramente a eles, ou se isso esquece até que ponto estão em dívida com sua comunidade, seus professores, seu país, as circunstâncias de sua vida e, em suma, a sorte que os ajudou em seu caminho. Apreciar o valor da sorte na vida pode dar lugar a uma necessária humildade. Parte do problema é que as elites meritocráticas de hoje em dia sofrem uma falta de humildade. É o que chamo de arrogância meritocrática, e desafiá-la é um primeiro passo importante.
“As elites meritocráticas de hoje em dia sofrem uma falta de humildade. É o que chamo de arrogância meritocrática, e desafiá-la é um primeiro passo importante”
P. Mas como?
R. Devemos reconstruir os espaços comuns da cidadania democrática compartilhada. Reconstruir a infraestrutura cívica do modo de vida democrático, onde pessoas de classes e condições de vida diferentes se encontram. Devemos renovar e revigorar a sociedade civil. É preciso furar as bolhas para criar uma experiência democrática compartilhada.
P. O reconhecimento a certos trabalhadores essenciais durante a pandemia pode ser um passo no processo de renovação da dignidade do trabalho?
R. Acho que pode ser. Percebemos agora, especialmente aqueles que pudemos ficar em casa trabalhando, como dependemos do trabalho daqueles que assumem riscos dos quais estamos protegidos. Entregadores, cuidadores, empregados de supermercados, faxineiras, hospitais. Pode ser o momento de repensar o valor social da contribuição de quem faz trabalhos que atualmente não gozam do maior prestígio.
P. A meritocracia é vista como uma virtude, mas quando o sociólogo britânico Michael Young formulou o termo pela primeira vez, meio século atrás, o fez em chave distópica. Como foi essa evolução do conceito?
R. É muito interessante. Quando Young cunhou o termo, em 1958, não pretendia que descrevesse um ideal. Desde o começo reconheceu o lado escuro. Foram os políticos que depois abraçaram o termo como um ideal. Desde [Ronald] Reagan, democratas e republicanos usaram isto que chamo de retórica da ascensão. Tony Blair se referiu expressamente à meritocracia como o ideal que queria para o Reino Unido. Inclusive Obama usou repetidamente a frase “você pode conseguir se tentar”. Isso parece inspirador, animar as pessoas a prosperarem. Mas ignora o lado escuro. Meu objetivo é chamar a atenção, sobretudo dos partidos progressistas, sobre como isto lhes escapou e como precisam compreendê-lo se quiserem oferecer uma alternativa ao populismo que explorou estes ressentimentos.
P. Já antes de Trump, o Partido Democrata tinha mais a ver com as elites educadas que com as classes trabalhadoras…
R. É fascinante essa mudança na base eleitoral. Os partidos socialdemocratas eram apoiados por e dedicados às pessoas trabalhadoras e de classe média. Tradicionalmente, aqueles mais ricos e com mais educação tendiam a votar nos republicanos, e os operários votavam nos democratas. Nos anos setenta e oitenta começa a mudar e, já nos noventa, Bill Clinton e Tony Blair abraçam a versão neoliberal da globalização, a desregulação das finanças, e não se preocupam com as desigualdades que começam a se aprofundar. Gradualmente se sintonizam mais com os valores das elites profissionais, tecnocráticas e bem educadas, e perdem o apoio da classe operária. Agora, aqueles com título universitário votam nos democratas, e aqueles sem título votam em Trump. A educação se tornou a maior divisão na política norte-americana.
P. Você aponta que Obama, depois do impacto da crise financeira, se preocupou mais em silenciar a fúria contra Wall Street que em articulá-la.
R. Tinha trazido os mesmos conselheiros econômicos que contribuíram, sob Clinton, para desregular a indústria financeira. Não formulou as perguntas básicas. Foi uma resposta amistosa a Wall Street por parte de uma Administração democrata. E isso deixou a muita gente desiludida, à direita e à esquerda. À direita deu lugar ao Tea Party; à esquerda, ao Occupy e, finalmente, ao fenômeno Bernie Sanders. Isso foi um erro que deixou uma sombra sobre o resto da presidência de Obama e aplainou o terreno para Trump.
P. Hoje a proposta democrata é basicamente salientar as diferenças com Trump…
R. Sim. No momento a visão alternativa é: “Não somos Trump”. Claro que, dada a crise que enfrentamos, isso é atrativo em si mesmo. É um sentimento de alívio, mas não é suficiente para manter uma renovação de mais longo prazo da política progressista. Mesmo que Biden ganhe as eleições, estes problemas fundamentais não desaparecerão.
P. Em seu discurso de aceitação da indicação democrata, Biden falou um pouco de meritocracia: “Todos deveriam ter a oportunidade de chegar o mais longe que os seus sonhos e suas capacidades dadas por Deus permitirem”.
R. Falou, sim. Usou essa linguagem tradicional, e precisará avançar além disso se quiser superar a incapacidade dos democratas de falar efetivamente àqueles que foram abandonados pela globalização.
P. Essa ideia de mobilidade social, a capacidade de ascender até onde seu talento lhe permita, parece inerente à identidade norte-americana. Mas você diz que na realidade não é tão antiga…
R. Pois é. Achamos que é algo que define o sonho americano, mas esta retórica de ascender sozinho é proeminente nos anos oitenta e noventa. A versão anterior falava de uma ampla igualdade de condições, de cidadãos que se reuniam em espaços públicos e praticavam o respeito mútuo. Esse é o sonho americano mais generoso, e foi reduzido nas últimas quatro décadas à mobilidade ascendente individual.
P. Como vive a recente conversação do seu país com seu substrato racista?
R. Com grande esperança. O Black Lives Matter se tornou a principal força de energia civil e idealismo do nosso tempo.
P. Pode ser uma forma de tecer essas conexões que você reivindica?
R. Sim, poderia ser uma forma de construir conexões através de gerações e de classes. Poderia começar a sanar nossa vida civil. É o movimento cívico mais animador que vimos em muito tempo. É o raio de esperança dentro do que, de resto, é uma situação sombria e incerta.
Fonte: El País
Créditos: El País